15.10.15

Bob Dylan











Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo, e sua inclinação para mudar o mundo, chover no deserto, doer sem dor, dizer sem ter dito, parar o tempo, nascer as vezes todas que for preciso, tem dias em que escolhe o homem certo para se fazer ouvir.
Receita infalível para canções perfeitas: sem filtros, mas com duas garrafas de vinho, um copo meio cheio e outro meio vazio, um estirador, duas mesas, uma cadeira, uma maço de cigarros, uma caneta e uma chávena de café. Papel suficiente para fazer bolas e atirar ao chão, ou ao ar, que vai dar ao mesmo. Esperar sentado pelo momento em que o corpo de um homem finalmente alinha com todas as estrelas, as troca por meia dúzia de linhas, deixa um pedaço da alma algures no universo.


9.9.11

As duas marcas de nascença de Alexander Galimov

Alexander Galimov, russo, jogador de hóquei em gelo, com 26 anos, canhoto, avançado direito, medalha de prata do campeonato do mundo de juniores em 2005, o mais antigo jogador do plantel do Lokomotiv Yaroslavl, não o mais velho, mas o mais antigo, está lá desde 2004 e essa era até ontem ao inicio da tarde a única marca de nascença que o distinguia naquele grupo de todos os outros hoquistas da equipa, o facto de entre todos ter sido o primeiro a chegar. Ele, de 26 anos, avançado canhoto, fintou o destino de todo o grupo e evitou a morte no fogo, no ferro e no ar, na água e no chão. A nova marca de nascença queimou-lhe o corpo inteiro, as notícias em cima da hora disseram que ele tinha morrido, mas ele não, ele tinha sido o primeiro a chegar, vai ser o último a partir, as notícias dizem agora que o corpo de Alexander Galimov não morreu no bloco operatório e a internet que lhe tinha dado a extrema unção já se actualizou e manda dizer que o estado é crítico mas que não é defunto.

4.9.11

As palavras de amor não têm domingo

Domingo, cidade do Porto, o café custa trinta cêntimos na máquina de bebidas quentes do emprego  ao lado e antes da porta de vidro, em frente à porta do elevador, no segundo andar, numa plataforma intermédia dos lanços dos degraus, a espreitar a subida para o terceiro piso, a máquina, ao serviço de jornalistas, médicos, produtores, enfermeiros, reprodutores, gente de uma redacção de televisão e de uma clinica de fertilidade.
A clínica está fechada ao domingo, a televisão não, a televisão não desliga a ficha, mas a clínica sim, desliga-se deste prédio aos domingos e aos domingos aqui tudo é mais quieto e mais silêncio, é verdade que há menos jornalistas e menos conversas, mas a verdade é que este vazio é porque hoje, domingo, não chegam casais de mão dada e não sobem o elevador, não sobem os degraus, não fazem pausar as conversas dos fumadores em frente à máquina do café quando passam, não fazem passar, diante das nossas vidas, os projectos de amor, nem as palavras de mão dada, nem a ilusão da felicidade medicamente assistida.

As palavras de amor não têm domingo é o título da canção francesa do festival da eurovisão de 1987. Intérprete, Cristine Minier. Posição, 14º lugar. Pontos, 44. Poucos votos no amor sem pausas

1.9.11

O senhor proprietário

Estou na posse de uma tarde livre, de uma praia vazia, de um atlântico norte quieto às ordens de uma bandeira amarela inesperadamente no papel de peixe fora de água. Tenho ao alcance das mãos o teclado de um telefone pequeno para o tamanho dos dedos, tenho ao alcance das mãos um tubo de papel com açúcar, uma chávena com café e um pires com a chávena. Tenho um pára-vento tão desnecessário quanto a bandeira a amarela, tenho a necessidade de o contar, tenho um estrado de madeira por baixo dos pés até chegar à areia, tenho uma passadeira azul em rede até ao fim das linhas das barracas azuis. Tenho curiosidade sobre a temperatura da água do mar, tenho pena do mês de agosto e tenho setembro a nascer do sol.

29.8.11

A última hora

A velha história da ribeira do Porto fotografada do lado de Gaia acontece agora no telemóvel do Pedro, virado para o aço dos tabuleiros e do arco da ponte, com quatro barcos rabelos amarrados ao rio, azul escuro, de onde saltam as cores da madeira e da tinta amarela e das pipas. Vejo um ractângulo vermelho com o nome branco de uma marca de carros, espanhola, vejo o ceú azul mais claro, vejo o Porto em miniatura e vejo pela fofografia que o Pedro não está na rádio a cuidar do som. Está na rua a cuidar da imagem da cidade. E eu gosto.
O Pedro, e eu, estamos longe do caminhos longos do senhor Senkawa.O senhor Senkawa é um fotógrado japonês que gosta de futebol  do FC Tokio, que gosta de comer e que gosta de Gotemba (Gotemba é outra cidade japonesa) e que gosta de correr. Hoje correu quinze quilómetros numa hora, dezanove minutos e trinta e seis segundos. Equanto isso, o André pousou a carteira, pousou o ipad, numa mesa, ao lado do cinzeiro branco, pousado, na tal mesa que é castanha e pediu um café e deixou-se estar sentado a tirar partido da sombra das árvores.
Nesse intervalo do café, em casa, o Filipe deitou o gato e deitou cão em cima da manta manta rosa que está em cima de uma manta amarela que está em cima de um sofá. A Tânia tem uma blusa lilás e o cabelo apanhadoe uma madeixa loira solta no rosto. Sorri e o gato ronrona.
O António encontra o número trinta e sete em cima de portas, tira fotografias porque tem trinta e sete anos e partilha no Instagram.


22.8.11

A picante história de um campo de futebol loiro

Existe liberdade absoluta nos campos amarelos à entrada de uma aldeia nas proximidades da fronteira transmontana com a Espanha. O tractor andou ali naquela descida antes do almoço, primeiro andou cem metros perpendiculares à rua, para dentro do campo, e depois andou mais sessenta metros paralelos à rua e depois andou no interior desse rectângulo todo, entre duas balizas que ali estão o ano inteiro e que agora nos surgem mais à vista, depiladas de todos os cardos, as balizas, mas também o campo. Andou ali o tractor e andou ali um homem com duas redes às costas, vestiu as balizas para o jogo do fim de tarde, a seguir ao calor, entre os solteiros e os casados de Prado Gatão.
Os jogadores estavam onde estavam os copos de plástico e a rulote cinzenta e máquina da cerveja. Mais do que beber para matar a sede, estiveram a beber para o dia baixar a temperatura para mais longe dos quarenta graus.
Saberão mais as mulheres deste assunto seguinte, e também o sabem os homens dos século XXI: nenhuma depilação é definitiva. O campo de futebol loiro é um tapete de raízes secas e cardos. A terra tem a firmeza da jornada lavrada. As chuteiras vão mais ao fundo e os pés picam, avisam para o perigo das quedas desta espécie de jogo que aí vinha de faquires. Onde não havia cardos, nem rancos nem palha, havia todas as variáveis da merda das vacas e dos cordeiros, seca e nem tanto.
Existe liberdade absoluta nos campos amarelos à entrada de uma aldeia. Os jogadores pousaram os copos na praça central e estão a chegar e estacionam os carros junto à linha lateral, as motorizadas avançam pelas quatro linhas como bolas à solta, uma delas cai rasteirada pela roda da frente. O solteiro que ia a guiar e que saltou pelo guiador vai jogar com sangue nos pés e com sangue na alma. Acho mesmo que todos os solteiros vão jogar assim. Eu, que nunca casei, ao abrigo da nova lei de transferências, jogo na equipa dos casados e tenho direito a uma camisola cor de laranja em lã e de manga comprida.
O encontro mais importante do ano começa quando o dia tem trinta e dois graus e dezoito horas e quinze minutos. Quando o dia tem trinta e dois graus e dezoito horas e vinte minutos e eu tenho dois dribles seguidos, só não chego ao terceiro porque tenho a mão de um médio nas costas e o bico do pé de um defesa no tornozelo. Antes de cair, chego a ter tempo de desejar a sorte de cair em cima da merda, mas infelizmente todas aquelas cambalhotas até parar foram cardos, foram prosas.
Voltei ao jogo na segunda parte. Empatámos dois dois com tremenda ajuda do apito no primeiro golo. Tivemos, às portas de Espanha, uma arbitragem à portuguesa.
Qual o melhor momento do encontro? O cordeiro na brasa, o palaçoulo na mão, a cortar a carne em cima da broa e o vinho tinto lavrado.

como os livros nos chegam às mãos

A mulher com o corpete vermelho passa os olhos azuis pelo rosto moreno de um homem, passa as mãos pela esbranquiçada capa de um livro, exibe o título e as unhas vermelhas, sorri, afasta o cabelo loiro, o homem e a mulher entrelaçam os braços, sobem o primeiro lanço de escadas dentro do hotel, procuram um elevador, encontram um quarto, ela é puta, ele não.
Belle é inglesa, tem um diário secreto, o diário secreto de uma call-girl, o corpo todo é uma máquina de fazer dinheiro, de fazer dinheiro como as mulheres fazem com o corpo, e as mãos até escrevem. Belle vive, conta, faz, diz, escreve, entra em casa, tira a puta do organismo, senta-se a ler um livro e quando está a ler chama-se Hanna, é uma rapariga em Londres, recém licenciada, tem um melhor amigo homem e nem ele sabe que o emprego numa multinacional é inventado e que a amiga responde por outro nome com a carteira aberta.
Billie Piper, cantora e actriz faz de Hanna e de Belle. Na cena que me prendeu, a loira de corpete vermelho entrega ao primeiro cliente da outra vida, com o qual mantém encontros esporádicos, antes de subirem para o quarto, e antes de ela desempenhar o papel de namoradinha com vontade, Belle entrega o livro que Hanna comprou e trouxe de casa dentro de uma mala preta: The Human Stain, de Phillip Roth.
Acabei de ver o episódio três da série um de Secret Diary of a Call Girl. Elaborei um roteiro secreto. Fiz catorze quilómetros de bicicleta em quarenta e tal minutos. Regressei a casa e tomei banho. Aqueci o jantar no micro-ondas, jantei e saí de casa. Tomei café na livraria, procurei o livro, mas A Mancha Humana estava esgotada. Deixei o meu número de telefone para avisarem da recepção do livro que ficou encomendado. Há-de chegar às minhas mãos como se estivesse a sair das mãos da Billie Piper.

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...