28.12.09

O meu primeiro porno

Prólogo continuado

Ao reentrar no quarto, fez por passar ao largo da cama. Era lá que o mundo inteiro se fodia, naquele ringue sem cordas. A coisa fazia-se no rectângulo deitado ao chão, onde dois metros e vinte de comprimento se cruzam com dois metros exactos de largura. Naquela madrugada ele tinha sido um bom animal. Tinha sido o animal que ela estava a precisar que ele fosse.

Na quietude de uma cabeça sozinha num apartamento sobre o rio Douro, enquanto recuperava os passos perdidos da noite anterior, o homem que ainda agora julgava ter morrido, esteve prestes a tropeçar e isso só de se ter lembrado a última erecção. Última de anterior, não última como se tivesse sido há uma enormidade de tempo. De adjectivo em adjectivo faz tangentes imaginárias a superlativos relaccionados, em grande escala, com o dispositivo sexual que tinha deixado, a noite inteira ao dispor de uma cidadã, que apesar de já a conhecer de trás para a frente, por dentro e por fora, ainda não tinha tido oportunidade de dar um passo tão primário como o de perguntar o nome. A rapariga tinha sofrido do mesmo lapso inquiritivo, pelo que as coisas estavam empatadas no final do combate.

Posto isto, ele continuava à procura da pessoa que um dia tinha sido em casa de uma estranha que dela sabia apenas a ter entranhado até mais não. Não irá chegar ao local onde está a resposta, continuando a fase da vida em que deixa o corpo em rounds, espalhado pelas noites da cidade, a caminho do útero de mulheres com perninhas de abertura fácil.

27.12.09

O meu primeiro porno

Prólogo
Quando eu morrer, não chores por mim. Posso estar a divertir-me.
Sem mais uma palavra, um ponto, ou uma vírgula, pousou o telefone no telefone. Perdeu a conta aos minutos a seguir a esta parte do dia. Ao longo de todos estes anos nunca precisou de um papel ou de uma caneta para saber todos os tempos e pessoas do verbo perder.
Quando a última frase foi dita, sobre ele se poderá dizer que, para cadáver, não tinha mau aspecto. As três rugas do lado externo da órbita direita mantinham-se mais fundas do que as três rugas do lado externo da órbita esquerda. Isso era visível a olho nú. E como tal, inquestionável.
A barba era demasiado nova para morrer daquela forma. Tinha seis dias junto ao queixo e por cima do lábio superior. E era dois dias mais nova na zona onde o maxilar se prolonga até ao pescoço e nas bochechas. Bochechas côncavas, encostadíssimas aos dentes pela parte de dentro da boca. Daquela boca tinha saído a sentença de pena de morte. Porquê? Por causa de um homem farto de ser homem dentro do parâmetros estabelecidos por lei. Esse homem nú com ossos à vista nos ombros, nos cotovelos, nos joelhos e nos tornozelos. Esse homem de nádegas alvas e pénis escurecido pela cor da mistura da quantidade de mulheres que por ele foram passando. Esse homem, de pé em frente ao fim. Esse que só se apercebe que afinal está vivo porque esteve tão perto de si próprio ao espelho. O vidro embaciado começou por tapar o rosto. Quando o rosto já não via o rosto, o rosto olhou para baixo e quando o fez viu os dedos dos pés sairem de perto dos dedos dos pés, viu os calcanhares ficarem perto dos calcanhares e por fim os calcanhares a caminho de desaparecerem do espelho. A morte não devia ser bem bem aquilo, pé ante pé, no chão gelado da casa de banho da mulher com quem tinha dormido ontem e a quem esperava ser apresentado hoje.

23.12.09

O português

O português é o melhor do mundo a ir ao shoppping. Vai como ninguém e vai tanto. Vai de manhã, vai à tarde, vai à noite. Informações recolhidas junto de fonte de segura dizem que também vai durante os sonhos. Até é capaz de dizer que não vai, mas depois vai. E quando vai, usa a estrada estando já na posse de outra patente: a do melhor condutor do mundo.
Vai pela direita das filas todas, porque nunca se apercebe do trânsito parado em ponto morto. Costuma ir na marcha branda com o queixo no guiador e as mãos entre os dois, guiador e queixo. [Se for mulher, leva a buzina mais a peito]. Depois vai de carro até à porta [se for mulher ainda vai mais] e como ainda não teve tempo de gastar as ultrapassagens todas, segue aos saltos entre com licenças nas escadas rolantes [se for mulher, aqui repousa].
O português é o melhor do mundo a desconhecer as horas. Aliás, só conhece uma, a última. E aí a acontece o fenómeno sobre amplitudes e densidades. Na correlacção entre o tempo, há quilómetros de minutos de utilização zero. E depois há mil e uma tarefas para executar em... mil e um segundos. Vai daí, mesas existem onde o bacalhau já está no prato sem vestígio de prendas por baixo do pinheiro.
O português é o melhor do mundo a jogar ao natal. O pai é incapaz ir para dentro da roupa vermelha com um taxa de álcool no sangue permitida por lei. Só faz a coisa por cima. E a troco de mini-chantagens conjugais. Veste-se de pai natal quando a mãe promete não dizer mais nada sobre o número de copos de vinho, whisky e champanhe, não necessariamente por esta ordem. E ainda a troco de uma promessa daquela prenda no sapatinho que fica por baixo dos lençóis [se for mulher, aqui diga de sua justiça].
O português é o melhor do mundo a falar de qualquer outro português. E quando o faz, faz com tudo. Seja para dizer um punhado de generalizações sobre pessoas a caminho de um centro comercial, ou então para ridicularizar os jogos de casal de um qualquer pai de família. Jogos de casal não são jogos de cama. Jogos de casal e jogos de cama, aqui, não são aquelas prendas que se oferecem no natal, excepto se for mulher a oferecer.
Por falar nisso, que horas são?

20.12.09

Hoje

Na projecção do filme, a tela abria a sala de cinema na direcção de uma rua semi-deserta. O tom sépia da imagem inicial era um plano aberto sobre uma cidade poluída. Este ou aquele adereço passam como notícia de rodapé a pretexto de sinalizarem um entardecer ventoso. Na beira do passeio, o cú rijo de um homem só confirma a temperatura negativa do dia sentado sobre o cimento cinzento às bolas pretas. As manchas escuras são pontos da história onde se diz era uma vez uma chiclete. O pés deste solitário calcam o chão calçados por umas botas grossas em pele de antílope. As pernas tremem à vez. De frio e de nervosimo. Os cotovelos estão nos joelhos, as mãos têm as palmas nas testa, quando os dedos já vão abrindo e fechando caminhos imaginários nos carreiros dos cabelos.
O único ser humano desta curta-metragem está a falar sozinho com a boca fechada. Arrepende-se em silêncio: do sorriso que não deu, da escolha errada de todas as palavras, da transmissão desarticulada de tudo o que tinha para dizer, da dor que causou, dos olhares que se evitaram, das lágrimas que os olhos choraram às escondidas, do beijo que ficou mais longe, do tempo que o dia perdeu. Hoje... Hoje foi o dia em que o amanhã não se deve inspirar.
Quando a projecção terminou, os dois únicos espectadores continuaram sentados. A tela, vazia de qualquer conteúdo, era algo mais do que uma metáfora.

18.12.09

Hollywood mon amour

Homem quase de meia idade segura o Ipod, coloca os headphones e desaparece dentro de uma música. Não há factos, nem há provas. Há a vontade de acreditar ou não. Mas que foi assim, foi. E as coisas que são e não têm a prova de ter sido, são, regra geral, aquelas que realmente foram. Toda esta conversa para dizer que consta que: lá dentro, no interior da música, a voz de uma mulher faz acreditar no ceú, tal qual nos contaram quando éramos miúdos e acreditávamos. Em tudo. Tudo pode ser um homem no céu, dentro de uma música, em que a voz de uma mulher era um anjo se os anjos existissem. E o homem, de quase meia idade, pouco católico, vê tudo em tons de azul e criaturas celestiais. Até sonhou beijar a mulher da canção, não fosse isso ser como tocar a boca do inferno. Hesitou primeiro. Ardeu depois na paz do senhor. As chamas falavam de Electric Dreams.

14.12.09

As coisas que acontecem

Bem contadas eram em número de sete, as horas, na tarde deste domingo. Nenhuma hora é boa para escutar uma empregada de loja falar sobre futebol e esta, obviamente, também o não foi. Dizia, entre dobras de casacos de malha com botões para homem: "nesta altura do campeonato é bem bom". Ela estava obviamente a falar sobre o preço dos casacos, pese embora o que aquela boca dizia não fosse senão o dizer de uma mulher com ouvido de homem e martelado pela gíria. Em dois segundos decidi-me pelo silêncio. E quando o fiz, foi como se tivesse soprado o apito final numa expansiva, mas inútil conversa sobre modos e senhoras.
Numa outra loja, em dois degraus alongados, a paleta de camisas faz um arco-íris entristecido. Ou é das cores, ou é dos folhos. É certo que quem faz um folho, fá-lo por gosto. Pois faz. Mas as camisas são feias. Horríveis até, porque conseguiram atemorizar certas partes do meu corpo. O pescoço, os braços, o peito, a barriga, os ombros e as costas pediram às pernas para sairem dali o mais depressa possível. Assim foi.
Na rua, passava a haver, naquele certo instante, uma manifestação de homossexuais de todas as idades, acima dos 18 anos, e sexos. Protestavam contra as administrações das lojas por só haver secções para homens e para mulheres. Um moço mais inculto estava a ficar entusiamado sempre que o grito da ordem diza secção. Ao ouvido, um amigo explicou-lhe que era secção e não sexão. O rapaz foi cabisbaixo e partir dali, para ele a marcha já não era uma marcha, era murcha.
Mais à noitinha, o casal de rapazes escolheu para o café, um café-concerto. No palco, o show era um homem e uma viola amarela de madeira. Vieram os acordes e quando veio a primeira estrófe de Porto Côvo, um deles disse ao par uma outra frase sobre o tédio que tinha por aquela música. Teve esta resposta: "a letra podia ser bem pior. Podia começar assim... Roendo uma falange na Rodésia...". À noite, já na cama, um deles amuou por não conseguir ter orgasmos múltiplos. O outro ficou a pensar se para aquilo não havia concerto ou se então não havia conserto. Fosse, como fosse, isso era coisa de mulher. Mesmo aquelas com ouvido de homem.

7.12.09

Fernando

Era homem para não me perdoar se deixasse a minha memória esquecer-se dele. Vi-o hoje pela primeira vez quando a noite já ia há muito de breu e o Coura mandou a água para cima da terra por ordem superior de uma barragem situada mais acima no rio. As hierarquias são assim. E os caudais aguentam as ordens de montante até ao dia em que engrossam de vez e avançam desenfreados para além dos habituais trilhos. Como hoje. No lugar onde a rua não servia o próprio propósito, a proposíto de um lençol de água, de um lençol não, de dois o três edredons de água sobre o empedrado, numa distância de uns bons duzentos metros.
Aqui parámos o carro. Aqui decidimos seguir em frente. O faróis eram pequenas lanternas lançadas à negritude do caminho. Aqui decidimos seguir pelo meio, porque pelo meio não devia haver rio, e à esquerda ou há direita talvez houvesse. Os pneus nunca deixaram de sentir o chão. Lá fomos.
Na marca onde a água acaba, está um homem sorridente, com óculos baços. Tem altura de um português de 68 anos. Sorriu pela segunda vez quando abrandámos, com as mãos nos bolsos e um ligeiro guinar frontal, como quem quer meter conversa: "vocês são os segundos a passar aqui", disse, no tom exclamado de quem dá as boas vindas com uma vénia aos forasteiros aventurados, bem aventurados neste caso.
A scooter branca do Fernando já foi da filha psicóloga quando ela andava a estudar em Viana do Castelo. Por trás do avental do motociclo, Fernando transporta dois garrafões de vinho tinto. A mota anda com ele porque a filha já não precisa. Está bem na vida, tem 33 anos e não quer homem. Só por ser solteira "já foi a Londres, a Paris à dislei, à Índia, à Turquia, aos Estados Unidos, ao Brasil, ao Brasil não quer ir mais porque não gostou daquilo lá". A filha está a morar em Lisboa com a mãe e com o irmão. O Fernando veio de lá ontem. Tem casa em Belém, "no melhor sítio de Lisboa, onde toda a gente quer ter", mas o norte do coração deste homem está cravado no minho, em Vilar de Mouros.
O Fernando está meio espantado por nos ver ali. Porquê? Os novecentos habitantes de Vilar de Mouros já sabem tudo sobre a chuva no inverno e sabem dar graças a deus quando a chuva traz as cheias, para lavar o rio e deixar os restos do rio fertilizarem a terra.
A conversa com o Fernando está quase a terminar. Ele aponta lá para longe na água. "Eu ajudei a trazer o Elton John e a Amália Rodrigues para cantar ali". A luz dos médios de um carro aponta para lá e hoje esse passado está submerso.
Em Vilar Mouros, de qualquer um dos lados da ponte romana, ninguém precisa dos avisos provenientes da capital do império para saber que o que sobe, desce, o que molha, seca e o que começa, acaba.

PS: enquanto isto, a família do Fernando vendia cachecóis do Benfica à porta do estádio da Luz. A filha psicóloga foi uma vez de propósito à Polónia só para ver a campa do antigo Papa. Esqueci-me de lhe dizer que o Wojtyla chegou a ser guarda-redes quando era novo.

6.12.09

Bronquite aguda

Pai bronco pagou quatro bolos, quatro fatias de bolo de chocolate e quatro gelados. Também deve ter pago os três telemóveis de duzentos e cinquenta euros. Um ao filho adolescente bronco, outro à filha adolescente gorda e bronca e o restante à bronca mulher, uma senhora de quarenta e poucos anos e sem dentes à frente, no maxilar superior.
O pai bronco fala de boca cheia quando tira do bolso o telemóvel de quinhentos euros. Cada um comunica com o próprio telemóvel e nenhum levanta o olhos para ver o que o outro faz. Se um diz e"i, olha aqui isto", o outro, colado ecrã só diz : "num posso". O resto é silêncio... mordido aqui e ali por bocas habituadas a mastigar de boca aberta.
É sábado à noite e eles estão nisto no café de uma estação de serviço. Têm mil euros para telemóveis, mas não há saldo para ligar e marcar um consulta no dentista. Estão entretidos no seu mundo próprio, algures entre um serão em família e o sintoma óbvio de uma bronquite aguda.

5.12.09

O meu primeiro porno

Viena
Geraldo é uma história mal contada. É português, tem passaporte português, mas não tem cara de português. É alto e magro como nenhum português o é. É alto curvado e magro no osso. Por cá não há veias assim tão em cima do osso. A pele, num relato assim à pele, é pele para deixar a cal a duvidar da cor que tem. Geraldo orgulha-se do ar albino. É um homem de respeito, o mais educado dos senhores de todos os sítios onde esteja. Cá na terra, no café, em Londres ou Paris, nos lugares chiques ou nos espaços degradados. Geraldo era a diferença se a diferença fosse humana.
A voz grave não fala. Interrompe silêncios. Ela faz massagens aos ouvidos dos interlocutores. Em toda a parte do mundo. Menos ali, na garagem da terra. O filme está com um dia de atraso e dia a menos numa produção independente é o primeiro passo para o fim do projecto. O orçamento é tão difícil de aguentar como a erecção de oitenta e minutos da página 3 do guião. O Marcelo está de cabeça baixa. O Geraldo não tem mais um dia a perder e a cortesia habitual que se foda, o actor não vale um caralho ou então era mandar foder até não poder mais a gaja que escreveu o argumento. Levanta-te, ordenou. Não estaria à espera de uma reacção bíblica no lugar onde o pecado mora em regime de arrendamento vai para dois dias.
A falência de uma erecção transporta Geraldo para o lugar mais triste do mundo. No fim da rua a seguir ao Scotch Club, de frente para o Stadpark. Entrando por aí é contar 19 passos à direita. A uns bons dois metros de profundidade, a terra guarda pequenos segredos de um jovem adulto aspirante a realizador, com um nome difícil de esquecer. Geraldo Wolf.
O sonho do adolescente era dominar a técnica para dominar as câmaras. Hoje tem a sorte de poder vigiar vinte e quatro horas por dia o segredo do passado, porque foi instalada uma webcam no Stadpark, apontada ao Johan Strauss Monument em Viena. A câmara está disponível online.
O lado escondido de Geraldo Wolf permanece incógnito e aos olhos de toda a gente ao mesmo tempo. No computador onde mistura as cenas do filme porno, Geraldo constrói o futuro e controla o passado.
Viveu 23 anos em Vienna. Nunca se sentiu austríaco. Numa noite de bebedeira grossa foi ao pub com um plano na cabeça. Iria viver para o país do jogador que marcasse o primeiro golo do jogo que estivesse a ser transmitido. Quando o Futre pegou na bola, Geraldo já sabia que ia ser português. Os adeptos do Barcelona já tinham baixado a cabeça antes da bola ter entrado na baliza do Zubizarreta.
De cabeça baixa, Marcelo impede a gravação da cena onde a placa tinha marcado take 2.

4.12.09

O meu primeiro porno

take 1
A actriz principal tropeçou na ternura dos quarenta algures em 1979. No primeiro dia em que cá veio, bateu à porta e vinha bêbada. O rapaz que segura o único holofote do estúdio foi ver quem era, sorriu e disse-lhe educadamente que a senhora devia vir ao engano. Não, Não. Tinha ela ouvido uma conversa ontem à noite, entre dois homens e uma grade de cerveja no único café da terra. Vinha cá porque queria. E os dez euros por cena dos quais tinha ouvido falar davam jeito para comprar comida para os gatos. De pronto, virada para um embasbacado director, disse que ia fazer sessenta e nove. O realizador daquela garagem fria lá tentou argumentar que essa era uma idade para estar em casa. Mas como era bom coração prometeu-lhe um euro por dia para limpar os cenários, isto é, a gararem, no final de cada sessão. Ela zumbiu que nem pensar. Que sessenta e nove era para pôr na boca e deixar pôr na boca. Porque idade ela já contava uns meses para lá de setenta e dois.
Realizador com coração mole em negócio teso arrisca a falência em três tempos. O Geraldo mudou o argumento ao filme e introduziu um capítulo no futuro. Onde uma velha cuidava dos gatos e da hortênsias num campo atrás da garagem. Depois volta e meia a imagem desfocava, como se viesse à ideia da velha os dias férteis dos homens duros. Elvira gravou tudo à primeira e fez por merecer os dez euros em três horas. Não precisou de tirar a roupa. Esteve sozinha em cena.
Faltava quem desse o corpo ao manifesto do flash-back inventado pelo Geraldo. Quando bateu à porta, já vinha só de robe bordeaux, a estrela da cinemateca caseira, ela mesma, Júlia Dinheiro, nome de rebaptismo profissional, com olho para o negócio e na esperança de que ele se endireite.

Almoços no Lago - 1

Um dia ainda vão arranjar chatice. Basta aparecer um ou outro cliente mais perturbado.
Aquela dúzia de bolas de berlim não pode continuar com esta atitude. Todas, sem excepção, olham para nós ,humanos, pelo vidro da montra, com a língua de fora. Má educação. Isso não se faz. E isto para não ter de dizer que os sorrisos amarelos se detectam à distância. Tanta superioridade e sarcasmo vindos de quem, não tarda nada, e a troco de trocos, vai ter a vida feita em merda.
Noutro ponto da vitrina reina a delisusão no mundo dos sonhos. São uns vendidos. A cinquenta cêntimos a unidade.
Termino o panado de frango e o arroz de feijão com o pormenor delicioso de um éclair. Amanhã almoço voltado para a rua.

Pirata

Assistam em primeira fila à estupidez dividida por quatro. Vamos situar o episódio no tempo: foi anteontem. E no espaço: aconteceu no interior de um centro comercial.
Observador atento de costumes não se surpreende quando em quadra natalícia aparecem homens em número de quatro (e a estupidez não está aqui), divididos por dois fatos de rena. Emparelhados, puxam um trenó grande. O trenó grande vem com um pequeno pai natal sentado.
A estupidez a dividir por quatro vem ao lado. Dois atrás. Dois à frente. Quatro seguranças altos, de fato escuro, braços cruzados sobre o abdómen, intercomunicadores enfiados nas orelhas e mocrofones em fios finos até perto da boca. Ridículo, este desfile de renas e pai natal. O dolce vitta não é a Faixa de Gaza. Mandem dizer isso ao pessoal da segurança.
A caminho do carro, no parque de estacionamento, está ali à mão uma loja de desporto. As calças de atlestismo fazem falta e a proximidade da ocasião, faz o ladrão. Agora que já se pode seguir a caminho do carro, não é possível ir embora e esconder dos olhos uma árvore de natal postiça de quatro andares. O pai natal está sentado num trono para dar colo às crianças para a fotografia. A fila de pais chega quase ao tamanho da estupidez dos seguranças musculados para conter o eventual excesso de alegria das crianças. Isto está para o espírito da quadra como a bota esquerda está para o pé direito e vice-versa. E ainda por cima enganam os petizes com com um pai natal anoréctico e anão.
Chegado a casa, não posso deixar as calças de atletismo guardadas no sapatinho à espera do dia 25. Vi o que a crise fez ao pai natal e temo que ele tenha poucos dias de vida .
Quando o corpo volta à estar fora de casa e as pernas começam a correr, vou tempestade dentro, confortado por estar equipado a preceito.
Entre o ir e o vir foram seis quilómetros. No videoclube aluguei o Into the Wild para ver a seguir ao banho. Quando é que o pirata chega a esta história? Não chega. Porque deixei de lado o fato de pirata cibernético e preferi, sem duvidar, a pele de corredor de trazer por casa

O senhor deputado

Generalizar é um verbo para não se dizer.
Corre o risco ao lado, com os dentes do pente em aço cinza prata. Atira a laca ao cabelo em abundância. Está a viver o momento mais generoso do dia. A laca vence a atmosfera num inequívoco knock-out e ele julga ter descoberto a pólvora quando o ar, ele próprio, precisa de se baixar para respirar. Generalizar é um verbo para não se dizer.
O dia de estreia no hemiciclo foi o pretexto perfeito . Assentava no senhor deputado como um fato italiano de quatro dígitos. O pretexto era uma ida às compras.
Tocou á campainha do número 28 da rua das Portas de Santo Antão. Visto desde o passeio, podia ser um sobrinho de visita a uma velha tia habituada à prisão do último andar de um prédio sem elevador.
No último lanço de escadas o sobrinho já não tinha a compostura de um deputado, tinha sim o ar de um sobrinhoque bateu á porta eraada e se viu sem saber como na ampla entrada do studio mais exclusivo e secreto do país. Ali ficava o último grito. Julgo que ganiu baixinho. O último grito das canetas que é melhor ter 20 euros sempre à mão, não vá a carga acabar e o texto fica longe do fim; O último grito das gravatas, no ponto da loja em que dois rapazes de ar sensível confudem um fio de pôr ao peito com uma gravta fina; o último grito das meias, tão finas, fininhas, quase de mulher, mas não porque eles do grupo parlamentar de direita não suportam homens em collants. também não vamos estar a generalizar.
Chegou ao parlamento com o melhor fato, a melhor camisa, a melhor gravata, os melhores sapatos. O cabelo obedecia ao processod e lacagem. Ficou sentado na segunda fila. Foi chamado em primeio lugar. Anunciou que tinha sido retirado o livre-trânsito ao verbo generalizar...
- "acabou o tempo senhor deputado. Há coias que nunca mudam. Novos ou velhos, nunca cumprem a alínea do regimento relativa ao tempo"
O neo-deputado pretendeu retorquir, dizendo que o presidente da assembleia da república estava a generalizar, mas já não o pôde fazer.

Chamem-lhe tolo

Em todos os lugares há. Há nas cidades, na aldeias, há aqui e ali também há. O homenzinho a quem se chama Tono num lado, Quim no outro, a quem se chama o diminutivo do nome antes do adjectivo tolo, mas que se diz como se houvesse um hífen a ligar o tolo ao homem e vice-versa. Por estas bandas chamam-lhe Tono. Tolo, claro.
Nunca mais é quinta-feira, nunca mais é quinta-feira, nunca mais é quinta feira. Hoje é sexta. E o nosso António já perdeu a conta às quintas sussuradas entre os dedos e os lábios, ali para os lados dos botões da camisa de flanela. O pull-over tapava os ouvidos, mas assistia de olhos em bico.
António veste um casaco novo. Sabe de onde vem, porque os anteriores a este também vieram do aido frio da casa da falecida tia do Adolfo, nas traseiras do cemitério e da igreja. Em troca, Adolfo não quer mais do que a amostra dos tópicos do discurso que o Tono tolo há-de levar à assembleia de freguesia. Recebe duas ideias em primeira mão. Entrega um blazer azul escuro habituado aos ombros de 3 gerações da família Brandão. O último dono enlouqueceu quando as finanças juraram a pés juntos que na família, o dinheiro tinha dado lugar às dívidas. Temos portanto que o blazer não iria estranhar o cachaço do cliente seguinte, outro tolo, por sinal.
Tono vestiu-o no fim-de-semana. No domingo à noite pôs-se a pensar quando e onde o teria comprado. Na quinta-feira lá se lembrou, ao passar em frente à casa do falido Adolfo, a caminho da assembleia de freguesia.
Veio um com chave e entrou. Vieram mais três, bateram à porta e entraram. E deixaram a porta aberta para o resto dos constituintes e eventuais assistentes. Veio o povo, homens velhos. Mais um ou outra trintona. E veio o tolo, direito ao fundo da sala, acomodado de pé a um canto, vestindo um casaco que já tinha sido rico.
António Manuel Socorro. O primeiro nome da lista. Inscrito para subir ao púlpito e falar quando estivessem concluidos todos os pontos da ordem do dia.
Lá vai o Tono tolo. O pensamento percorreu a sala enquanto ele ia e todos foram trocando expressões resumidas num simples o que virá por aí. Veio isto:
- "Começo pelo escândalo da cegueira nos hospitais. Querem mesmo resolver os problemas? Então despeçam os oftalmologistas e chamem para resolver o assunto o senhor que é presidente da Vista Alegre.
E as Redes Eléctricas Nacionais? Era com dois penedos que se revolvia a questão, era? Quando muito, com dois penedos fazia-se electricidade estática. Mas foi bem pior. Foi um curto-circuito jeitoso.
Para já não falar na sucata. Um administrador de um banco, para mostrar que é poupado foi comprar um telemóvel à sucata e comprou um que tinha sido deitado fora por um polícia judiciário. O telefone tinha o vírus do defeito profissional e gravava sozinho. A coisa correu mal. E agora vai ser preciso uma maratona para ilibar toda a gente.
Pensam que os tribunais não têm mais nada para fazer? O carro do juiz não precisa de peças em segunda mão. Nem sei porque é que o senhor da sucata vai todos os dias ao tribunal. É uma perda de tempo. O juiz não vai comprar nada e as peças ficam a ganhar ferrugem.
Também já se diz por aí que o presidente da república não sabe mandar emails. Isso eu não acredito. Mandar um mail é tão fácil como, como, como... olha, como comer bolo-rei, por exemplo que o natal está aí à porta.
Deixem mas é as pessoas em paz. Porque quando o senhor andava na escola ainda não havia computadores. Bem, para dizer a verdade, quando o senhor andava na escola ainda não havia luz, quanto mais redes eléctricas nacionais. Depois admiram-se que ninguém saiba destas coisas..."
Quando o vogal apagou as luzes o Tono estava autorizado a dormir num dos bancos compridos. Não o fez sem antes mandar mais duas ou três frases para o tecto. Adormeceu a dizer que nunca lhe tinha passado pelo cabeça que um penedo pudesse ter filhos.

Pausa

Gosto. Gosto quando a saia dança e corpo canta. Gosto desta música inédita no barulho dos lábios. Os teus olhos estão a chover; eu sossego o beijo como quem pede desculpa sem saber do quê. A pele do teu rosto é a palma da minha mão. Gosto quando a seguir à pausa anseias pelas cenas dos próximos capítulos. Gosto quando te digo que amanhã não existe, que isso é hoje numa pausa do tempo. Aceitas no colo um tratado de paz.

Adolescente

Eu sou o primeiro segredo de Fátima. A minha mãe sabia mais do que a Lúcia e chegou primeiro a casa do meu pai. Quando soube que devia estar para nascer, o meu avô ficou tão emocionado que até quis oferecer ao meu pai um lugar no céu. Só não conseguiu porque a arma estava encravada.

O meu avô é uma pessoa muito acólita. Beba dois garrafões de vinho por dia. E um à noite. O que ele não admite é que se brinque com a Igreja. Quando estou à beira dele só posso recordar as sobrancelhas do Álvaro Cunhal. Se falar sobre a vida privada do Salazar já estou a pisar o risco. Proibido mesmo é falar daquela saia que ficou esquecida um dia na cama do ditador. E não convêm nada recordar que nesse mesmo dia o Cerejeira deu a missa de fato e gravata.

É melhor ficar por aqui. Quando acha que me porto mal, ou que me estou a esticar, a minha mãe, Fátima, obriga-me a ouvir o cd dos Blasted Mecanism. Fui!!

O coleccionador de títulos

Fica na rua alta empedrada. No cruzamento dessa com a mais estreita de todas as ruas da freguesia. Isso, à partida, faz deste espaço uma coisa torta, se é que a geometria do volume dos espaços permite esta definição. Num corpo entortado, no lugar para abrir dia sim dia sim, entre o pôr e o nascer do sol. Onde as pessoas são lavadas com álcool por dentro. Cá estamos. E daqui contamos.
No sitío do balcão de onde espreitam as torneiras de cerveja, o título a duas linhas, recortado de um jornal, aproxima uma de outra, as torneiras, e acredito que as deixa de sobreaviso quando diz: "contagiar os outros dá prisão caso haja esse propósito".
A propósito, ou sem propósito, cá se prova uma verdade das artes. A escultura é obra do acaso. E por acaso, agora que o dizemos, nunca antes ninguém teria dito como iria ficar bem, encostada à parede do lado esquerdo do balcão, uma mesa de trabalhos manuais de uma escola de Valadares. Não foi, mas parece que foi desenhada primeiro, e gasta depois, para estar num estado perfeito de integração quando chegasse o bar. Da mesma escola, alguém trouxe uma banca de carpinteiro com um torno. Foi música para os ouvidos do DJ. Tem sobre ela os pratos. Dentro dela os discos. E com ela as noites dançam.
Quem escolhe, quem põe, quem muda, quem dita o som do som é o homem quem entregamos o título desta história, o coleccionador do títulos. Esse, o tal que toma café, de jornal sobre a mesa e tesoura na mão. Recorta nesgas ou pedaços das vésperas. E cola as frases, boas ou más, nas paredes do lugar onde as pessoas vão à noite para lavar o corpo por dentro com bebidas para maiores de 16 anos. Agora que falamos em idade, vamos olhar de perto para uma pedra. Uma pequena pedra, exposta na banca grande de madeira, em cima de um pano escuro. Por cima dela, na parede de ferro, o título é: "uma pedra vencedora". O coleccionador acreditou ter ganho a noite com a ideia e bendisse a hora em que à hora do café lhe apareceu uma associação daquelas. Com a tesoura à mão, cortou o bem pela raiz.
Quando me aproximo para pagar a despesa, a caixa registadora guarda, de frente para os clientes, a colagem onde se pode ler: "repare no que sofremos".
Reparo que já é tarde e que hoje vou embora sem pôr a vista em cima do dono da casa. Olhando a direita vejo um título como se fosse um quadro: "já pensaram que eu tinha morrido", está lá, desta forma, na parede.
É junto à porta, à saída, que encontro esta noite pela primeira vez o coleccionador de títulos. Nem parece o mesmo quando não traz vestida a t-shirt onde mandou escrever local hero. Antes de chegar a ele passei pela colagem junto ao torno onde a música acontece e a colagem perguntava: "quando está de folga o DJ também dorme?" Talvez sim, talvez não. Aguardemos com expectativa pelas notícias do próximo pôr do sol.

Afirmativo

Quando se torna demasiado conhecido por factores externos às letras, um escritor não é os livros que escreve. É a cara que tem.
Quando assim, ele deixa de ter corpo. Para se juntar aos outros e passar a ser mais um homem transparente. Os livros contam histórias gémeas desta. São esses sobre lado esquerdo da prateleira de cima, esses mesmos, os de páginas em branco.

Amor em nota breve

Nessa noite, antes de saírem para ver o jogo de futebol no café da aldeia, o mais próximo que ele esteve do amor em estado líquido foi quando empurrou com a palma da mão, para baixo, a tampa-torneira no frasco de Dettol. As extremidades do membros superiores foram para a rua desinfectadas. Já quanto ao resto, dúvidas havia sobre a eficácia de uma lavagem cerebal. Porque o pecado, quando vem na forma de uma ideia pensada, não vai lá com anti-sépticos de trazer por casa.

Sexo masculino

Entra um som grave na sala. Vem do toque do arco nas cordas. É um violino a dizer que a banda sonora desta tarde é uma estação chamada outono. É um barulho quente. Antecede a entrada de uma voz triste. Podia ser o início de um filme nostálgico. Não é. É a realidade quando bate com força nas rochas. É o mar aflito por chegar a terra, o som do violino, preso, espalmado, num disco.
Quando todos os outros instrumentos chegam à música, há quem corra num estrado de madeira sobre a areia da praia. O vento, que não tinha sido convidado para a corrida desta tarde, lá acabou por se decidir a aparecer à ultima da hora. Trazia demasiadas histórias para contar e contou-as todas ao mesmo tempo. Assim o fez, sem pedir licença, só porque tem a mania que é uma força da natureza. Mal dava escutar o violino, a voz e os outros instrumentos todos. Que nos perdoe a natureza, em toda a sua força, mas o homem também tem poderes reservados pela experiência para os mais inusitados apertos. Com o ligeiro toque de um dedo, se aumenta a opção onde diz volume.
A corrida tinha sido programada para durar trinta minutos. No último segundo do tempo estimado à partida, o obediente corpo do corredor obedeceu à sugestão do cérebro e deu ordem de paragem às pernas. O corredor parou no exacto lugar onde estava um cartaz de promoção ao filme "Morrer com um homem". Viu ali um sinal para se começar a portar como tal.

Enquanto dormes

Numa luz escura, para o interior de uma porta, de costas para a janela, por baixo do candeeiro. Ali. De costas para quem espreita de fora, o vulto de um homem segura qualquer coisa onde escreve as coisas mais difíceis de dizer no momento mais difícil de escrever. Começou a carta com um banal "enquanto dormes", para logo apagar essa ideia que dava a ideia de estar a colocar a remetente perante um título roubado à pressa da prateira de uma loja de conveniência, para desenrascar uma situação complicada. "Enquanto dormes" não seria, portanto, a linha de abertura da carta destinada à mulher da vida do senhor que segura a pena. A delicadeza do caso aconselha a desambiguar a palavra pena. Pena era a caneta mais antiga lá de casa, a que estava mais à mão quando se foi lembrar, à tardinha, de falar por escrito com ela. Pena era um sentimento para riscar do dicionário sentimental, mas era também o estado de espírito de um homem triste por ter escrito pela última vez há mais de um ano, e por, quando o fez, o ter feito para pôr o nome num cheque. Impagável, aquele momento de contrição absurda.
O caminho não era aquele. E por aquele caminho a carta não chegaria nunca aos olhos da destinatária. Estava sem dar conta a seguir todas as indicações que levavam a detalhes. A rua para onde tinha de escrever não era por ali. Nem de longe, nem de perto. Voltou agarrar a pena na mão direita e foi direito ao assunto. Disse tudo num fôlego e a prova está no papel dobrado em três, com mil cuidados.
O envelope está fechado quando uma funcionária dos correios o pousa no chão cinzento da balança. 78 gramas. Bem pesadas, e bem vistas as coisas a frio - como a temperatura do chão da balança - as palavras que lhe pesavam toneladas e por isso custavam a sair, não eram assim tão carregadas quanto isso. Mais do que uma teoria, a relatividade é um conceito prático.
No caminho de regresso a casa, releu todas a frases com a mente focada no príncio que era para ser "enquanto dormes" mas que não foi. Mas que contava tudo sobre a forma dos olhos dela nas diferentes partes do sono. Estendidos nas noites de paz. Enrugados se havia tempestade no sonho. E a boca, aberta ou fechada não importa, a boca era sempre dona e senhora, única dos seus beijos, a boca era, a dormir, o lado meigo dos sorrisos serenos. O cabelo dela assistia a todos estes movimentos de olhos bem abertos e dançava da almofada para os lençois. Os braços abraçam e as pernas caminham enquanto dormes. E a voz que vem de perto para dizer que te ama, vem desta boca que te dá um beijo e tem uma letra igual à letra da carta que está para chegar.

3.12.09

A palavra fim

O relógio vai ser obrigado a dar trinta voltas para trás. Para fazer doze horas vezes dois ao longo de quinze dias. Vamos a pé até ao passado, que este é recente e só foi há duas semanas.
À medida que Zurique se vai aproximando das rodas do avião, caminha para o fim o primeiro episódio da série 1 de Californication. O Ipod está preso entre os dois apoios de cabeça dos bancos da frente. É agasalhado por uma capa de silicone, feita à medida e com a intenção óbvia de servir de apara quedas: é uma espécie de salva-vidas para gadgets. Modernices.
A viagem a Zurique foi marcada com o propósito de ir ver a sorte futebolística de Portugal a caminho da África do Sul. Um assunto de nível mundial. Coisas da Bola.
Às voltas com um discurso redondo, o pensamento circula pelas décadas antepassadas, quando os portugueses desembarcavam aos jorros, aviões fora, e procuravam na Suiça, aprender coisas simples como qualidade ou segurança, em francês ou em alemão, visto que em Portugal, essas palavras eram de circunstância, sem significado prático.
Em cada uma das três noites em Zurique, nas horas a seguir ao jantar, fomos caminhar pelas ruas desertas, mas profundamente belas, da cidade. Numa dessas três noites, escolhemos andar pelas artérias sugeridas pelo taxista que nos trouxe do hotel para a baixa. Era um homem grande. Conduzia um jipe antigo com cheiro a Marlboro. Tinha o cabelo a fugir para o comprido e o bigode a fugir do lábio de cima para o lábio de baixo. É isso, o motorista de táxi tinha ar de motard. Era simpático, dizia-se pasmado com a qualidade do meu inglês. Falava da língua inglesa. E eu, que sou dado a equações mentais instantâneas, somei english mais Zurique e as páginas tantas já estava nas páginas do Assassino Inglês, de Daniel Silva, e olhava pelo vidro, a ver se reconhecia os sítios por onde tinha andado Gabriel Allon.
O meu camarada de trabalho, desperta-me daquela conta de somar ao introduzir na conversa a emigração portuguesa para a Suíça. Recorda um casal de amigos dos pais. Viviam no interior de Portugal e quando se reformaram tinham à espera na aldeia portuguesa um casarão de traço helvético. Disse-me que viviam nos anexos e que só utilizavam a mansão nos dias, escassos, em que recebiam visitas. Ainda me disse que na sala e nas outras divisões, os tapetes e os sofás estavam plastificados, para não estregar. Portuguesinhos, balbuciei de imediato. Modernices dos anos oitenta, suspirei em seguida. Para me recordar imediatamente da capa de silicone do meu Ipod. Vai já para o lixo. Quero admirar a beleza toda deste objecto de design. Se estragar, estragou. Quando estragar, estragou. Não há que ter medo da palavra que chega sempre em último lugar e que diz fim.

5165

Porto - Faltam seis quilómetros para a última linha.
A quem vem desde o hospital de Santo António, a caminho do Palácio de Cristal, o lado direito da rua oferece, antes de chegar à curva, pelos menos dois mini-estabelecimentos especializados na venda de vinho a retalho. Vamos entrar no primeiro, pelo acaso de ter sido o primeiro a abrir a porta, ainda antes das oito da manhã, num domingo molhado, cinzento e de termómetro encolhido. É um pão com queijo se faz favor e um Sumol de laranja. Tudo bem, pode ser FriSumo de ananás. E era uma vez o jejum. Um café quando puder, deixe estar, termine de lavar a louça à vontade, depois traga também uma garrafa de água, natural, das pequenas.
Lindinha nunca saiu do metro e cinquenta de altura, passa o dia de um lado para o outro a gastar o chão dos quatro metros quadrados do balcão. O marido de Lindinha é o dono do tasco e quer-me parecer, o proprietário daquele par de vidas. Hoje tem o emprego de indicar o caminho da casa de banho aos homens e às mulheres que chegam para a maratona da cidade. Na soleira da porta, com vista os jardins do palácio, o senhor gestor do negócio e um amigo que se ainda não está bêbado vai ficar, confidenciam que o Tono picheleiro também vai à corrida. Vai o Tono e vão mais 7499, incluindo este.
Dizem que a descer todos os santos ajudam? Então os santos de nada servem, porque só ajudam quando não é preciso. Bonito era vê-los aqui, no lugar onde a prova arranca, disparada no tiro de partida da pistola, aqui com a subida da rua Júlio Dinis pela frente, tal parede para trepar em direcção aos céus, sem santos para dar uma ajuda, eles que por serem nove horas devem estar a acordar para o dia e já a pensar na melhor forma de ajudar à missa de domingo. O pó de açucar das bolas de berlim, na montra da Petúlia, significam o topo do cume. A partir daqui é em linha recta, menos na rotunda Boavista, e a descer.
Quem chegou mesmo em cima da hora partida foi a chuva, fraquinha, mas persistente, como um corredor de fim-de-semana, inscrito a troco de cinco euros na corrida dos seis mil metros, ou mini-maratona. O quilómetro um demorou tanto tempo a chegar, que quando chegou, julguei estar já a chegar ao Japão, mas afinal não. Eram apenas turistas nipónicos, aos magotes, de dentes à mostra máquinas fotográficas ao peito, perto da zona dos hotéis.
A meio do viaduto das Andresas, por cima da VCI, o sinal de meio caminho andando. Três quilómetros nas pernas, numa altura em que as portas psicológicas da caixa de ar tinha sido todas abertas com sucesso e relativa facilidade. O aquecimento em marcha cautelosa estava feito, os pés podiam bater com mais força no asfalto. As ultrapassagens sucediam-se ao ritmo de duas ou três centenas por quilómetro. Junto ao Pinheiro Manso, o trajecto reentrou na avenida da Boavista, para que daí a nada surgisse uma recta em versão xl e sempre a descer, antes da cortada à direita para o parque da cidade e para o fim da prova.
Acabou, num estalar de dedos. Sem dor. De burro, de joelhos ou outra. Devia ter investido mais 5 euros. Davam direito a mais sete quilómetros e davam uma outra justiça à forma física destas pernas. A esta hora, os membros superiores do mesmo corpo dirigem-se ao teclado e perguntam onde está o homem que nunca se levantava antes da uma da tarde ao domingo e que fumava mais de um maço de cigarros por dia. Está aqui, mas não é o mesmo. O tempo corre. Hoje acompanhei o tempo com o dorsal 5165. Ainda estou para entender porque se chama dorsal a um número que nos dão para pôr ao peito.
Seis quilómetros em 32 minutos. Ritmo de passeio. Não houve mais desenvolvimentos sobre a maratona xs do Tono picheleiro. Regresso ao local da partida à mesma velocidade. Menos uma bola de berlim na montra da Petúlia. Porto. A última linha, afinal marca quase 12 quilómetros.

O filho mais velho do leiteiro

Mesmo que no começo, como está a acabar de acontecer, haja um recurso insistente a palavras como veloz, rápido, depressa ou até mesmo supersónico, não há-de ser por aí que estas linhas vão conseguir fugir ao destino. É fatal como o destino, que não a consigam fazer, a tentativa de fuga ao inevitável.
Como em tantas passagens do livro do século XXI, esta página também contém o antes e depois do 11 de setembro de 2001. A história de hoje vai preferir contar a evolução cronológica em marcha atrás e estacionar a narrativa numa rua de paralelo. Vem, com um carrinho de mão nas duas mãos e à frente das duas pernas, o homem a quem chamam de Bin Laden. Hoje tem a barba cortada. O cabelo também foi à tesoura, antes de ser penteado em partes democráticas -tanta coisa para dizer risco ao meio. Quem o vê hoje pela primeira vez, vê-se e deseja-se para compreender o porquê de se chamar Bin Laden a um pobre errante, cuja mente deixou de funcionar nas perfeitas condições vai para mais de quarenta anos.
Óleo, continua a faltar óleo ao carrinho mono-roda. Estridente no paralelo, Bin Laden levanta com as mãos, empurra e carrega o meio de transporte cuja chapa já foi chapa e agora é ferrugem prestes a passar a ser pó. Leva no carrinho uma velha tábua de passar a ferro. Não é assim que vai o consertar, concerteza. Leva umas quantas barras de ferro velho e leva um monitor de computador, uns cabos e um teclado. Ligasse ele aquilo tudo, ou a aquilo tudo, fizesse ele uma visita ao google e escrevesse Bin Laden e ficaria a saber que antes de ter ido ao barbeiro, a cara dele era a cara chapada do homem mais procurado do mundo. Oito anos depois do 11 de setembro ele, que é o filho mais velho do último leiteiro da freguesia, ele ainda não sabe do ar terrorista que a junção de nariz, queixo, olhos e pêlo fazem naquela cara.
Antes do 11 de setembro de 2001, ele já sabia de ser parecido, no que diz respeito ao rosto, com o filho único de deus. Cabelo e barba selvagem. Lá na terra, as pessoas pediam a outras pessoas para não dizerem que aquele maluco tinha cara assemelhada à de Jesus.
Nem antes, nem depois. Nunca. Ele nunca se achou um cristo. Esta tarde, a dois quilómetros do sítio onde o tinha visto pela última vez, o homem a quem ninguém fala, mas a quem chamam, quando estão para o chamar mais ou menos pelo nome, de Beto Leiteiro, seguia de carrinho de mão numa estrada de asfalto. Desta vez levava uma velha máquina de lavar roupa. Qual o melhor detergente para dar brilho a esta história?

O homem que sabe sempre o que quer

O homem que sabe sempre o que quer, cheira mal. Cheiro muito mal mesmo. O homem que sabe sempre o que quer era um adulto moreno, nos anos oitenta, que vestia uma camisa de ganga, azul clara, e umas calças de ganga, azuis escuras. Tinha os braços peludos, segurava a mulher pelo pulso, coitada, não pelo aperto nos ossos, mas por estar a ser obrigada a levar o nariz até às proximidades de um fedor promovido em horário nobre na televisão portuguesa.
Com essa coisa que estavámos a começar a chamar de publicidade, o homem que sabe sempre o que quer multiplicou-se. Era vendido e apresentado com a mesma pujança em prateleiras dos supermercados ou nas montras arrumadinhas da loja lá da freguesia. O terrível odor foi conquistando o nariz do país, venda após venda, rua após rua, uma cidade atrás da outra. Em simultâneo, a campanha emprenhava a recente sociedade democrata pelos ouvidos, com esta frase que podem já estar cansados de ler, esta que diz... o homem que sabe sempre o que quer. Ele era um gajo muito mal vestido e a ele coube o mérito de espalhar a falta de gosto na hora de escolher a indumentária pelo território inteiro: de norte a sul; do litoral ao interior.
Vinte e cinco anos mais tarde, o homem que sabe sempre o que quer ainda existe, mas só em espamos. Continua a ser detectável a cem metros de distância nos dias normais, ou a cinquenta metros nos dias em que estamos com gripe.
A maneira mais fácil de acabar com esta recordação é dizer que o verdadeiro homem que sabe sempre o que quer vai levar para a cova o tudo aquilo que foi em vida, sem tirar nem pôr. Esta visão do inferno faz-me chamar um táxi: "é para o crematório se faz favor".
Faço a viagem com a ideia de reservar desde já uma data incerta, mas que fique de preferência o mais distante possível nos calendários. No percurso, uma dúvida: como é que o homem que sabe sempre o que quer nunca soube escolher um perfume de jeito?
Só de pensar em tudo isto, o meu nariz já não sabe se está no táxi ou se está junto da língua para testemunhar o relato da história. Reconheço a cara do motorista do táxi de algum lado. Dá-me a ideia de já não a ver há uns bons vinte e cinco anos. Rezo por uma luz vermelha no próximo semáforo...

Um parágrafo de amor

E viveram felizes para sempre. Ela, que só tinha olhinhos para ele, pressentiu o princípio dos dias contados quando a leitura dos livros com letras mais pequeninas se assemelhava, a ela, a uma forma de utilizar a força como um meio para atingir um fim. Primeiro custava. Custava muito. Depois doía. Doía muito. Não tardou até que o simples descolar das pestanas se transformasse num sacrifício desumano. Não que aquilo fosse sinal de que o amor estava a desaparecer a olhos vistos. Não, não. Não era. Aquilo era uma simples dor física, facilmente resolvida com uma ida ao oftalmologista. O problema residia no facto de ela, um dia, há muito tempo, ter prometido olhinhos só para ele. Pensando na jura antiga, foi então que decidiu arriscar a cegueira a colocar-lhe, assim, de um dia para o outro, um valente par de óculos.

É sábado, é de manhã, é um mundo na cidade do Porto

Uma rapariga dança no passeio, na metade do caminho da rua Formosa, entre Santa Catarina e a rua da Alegria. As calças são justas, pele de zebra. Claro que sim, pretas e brancas. Para cima tem uma t-shirt azul do super-homem. Rodopia com a dança dos pés e rodopia com o braço direito ao alto e de indicador em riste.
O Michael Jackson está no primeiro andar, no princípio de uma carreira a solo, a ensaiar uma música à qual vai dar o nome de don´t stop till you get enough. Este som, que vem da janela de um velho prédio da baixa do Porto, começa agora a indavir as ruas, e não duvido que, um dia, vá conquistar o mundo.
O mundo está a encolher a olhos vistos. Apenas um quarteirão mais acima, em Fernandes Tomás, o Woody Allen está no primeiro lugar da fila na paragem de autocarros, mesmo em frente ao Plaza. Tem as mãos nos bolsos, a cabeça levantada na direcção do telhado da igreja dos congregados, os óculos pretos em massa, no lugar do costume. Só a cor do cabelo destoa um pouco. É de um castanho uma pouco mais claro do que o normal. Isso e a roupa levam-me concluir que aquele Woody Aleen é o da década de 70.
Vinte metros mais acima, a loja de instrumentos faz da montra um palco onde cabem a bateria, uma guitarra eléctrica, duas violas, uma concertina, o contrabaixo e os ferrinhos. Um dos tripés da exposição está vazio. É isso, falta o clarinete. Entro, pergunto e o dono diz que acaba de ser despachado por via marítima para Nova Iorque.
Pode ter sido de ter dormido poucas horas de sexta para sábado. Mas já que estou acordado e é sábado de manhã e estou na baixa do Porto, o melhor é parar de fazer filmes. Deve ser do estômago vazio... Subo as escadas rolantes no interior de um centro comercial e é aí que trato de elevar esta tosta mista, onde misturo realidade e ficção, ao extremo. Não é que para lá de um muro baixo em acrílico transparente, o Leonardo Cohen desembrulha um bolo de arroz com mil cuidados, deslumbrado com a beleza do papel, mas também por causa da velocidade que a idade lhe autoriza os movimentos. Sim. A idade, com o tempo, dá ao corpo um limitador de velocidade.
O Cohen foi o único a chegar aqui a esta história em tempo real. Talvez por isso permaneça sentado. A molhar o bolo de arroz no café e a lamentar a pequenez da chávena, enquanto que o Michael Jackson se despede dos músicos com um até sempre e o Woody apanha o autocarro, já a pensar que a viagem de avião o vai fazer chegar aos states muito mais cedo do que o clarinete. Quando o instrumento chegar aos Açores, ele afinal conseguiu acabar o argumento de mais um filme e começa a dizer em voz baixa que a viagem ao Porto talvez tenha sido uma perda de tempo porque já não vai ter tempo para músicas.
O Jackson descansa em paz sem problemas de tempo.
O Leonard Cohen consegue arranjar tempo para mais um bolo de arroz no Plaza.
Ao atravessar a rua, a rapariga das calças de zebra mistura-se com a passadeira. Perco-lhe o rumo sem perceber se o tempo vai fazer dela uma super-mulher.

Se esta pena fosse minha

Se esta pena fosse minha, a tinta já nem era tinta, nem isto seria, preto no branco, uma tentativa taralhouca de dizer um grito. Esta tinta era vermelho vivo, era sangue, e o alvo podia ser um carneiro, mal-morto, mas carneiro.
Se esta pena fosse minha, a letras batiam na página ao compasso do baixo dos National e eu cantava com as letras uma múscia de amor sem refrão. E não precisava de tanto espaço para dizer saudade... reduzia o vocábulo a menos de metade e aumentava o seu próprio sentimento, dizendo pura e simplesmente... tu.
Porque, se esta pena fosse minha, isto não era uma página, era um rádio. E eu transmitia, de megafone em punho, a minha própria campanha eleitoral. É que, se esta pena fosse minha, fazia do teu amor uma bandeira, cavava trincheiras, partia destemido e salvava o mundo.
A música Slow Show está incorporada em duas aplicações brancas inseridas nos ouvidos. Toca sem fim à vista em modo repeat.
Este texto não teria de ser um disco riscado, se esta pena fosse minha.

A torneira

A cabeça de um homem é um quarto às escuras. Durante muitas horas. Ao longo dos dias, que se transformam em semanas que por suas vez passam a meses, meses esses que quando vamos a ver já são anos e entretanto passou uma vida inteira.
A luz, no quarto às escuras, acende porque sim, acende porque não, acende com um beijo, acende com uma dor, acende com a importância ou com a nulidade.
Hoje a luz do quarto às escuras deste vosso senhorio, acendeu para dizer a esta mesmíssima pessoa que... torneira podia ser um bom título. É capaz, se for aprofundado o tema, se a ideia conseguir chegar à fonte que armazena a água que há-de ser conduzida a este e a outros lares. Mas hoje não. Porque sim e porque não. E porque o quarto está bem às escuras.
Chego ao WC do meu local de trabalho e reparo que algum colega menos atento deixou a água a correr. Fecho a torneira, como quem coloca um ponto final num texto.

O desconhecido profundo

Quando decidiu sair, fez o caminho até à porta em silêncio. Ia bravo por dentro, vermelho por fora, brusco nos passos. A saída apressada de quem vai cego de olhos abertos é sempre uma forma infeliz de virar as costas aos problemas. E uma situação complicada não fica para trás com o estalar do dedo médio no polegar.
Um homem, de cinquenta e cinco anos, quando decidiu abandonar um momento difícil de supetão, guardou o problema numa mochila invisível, que lhe faz pesar a nuca e todos, mas todos mesmo, já se aperceberam que aquele queixo sempre levantado não é confiança, mas retracção. E retracção é medo.
Quando decidiu sair com a discrição dos cobardes, e escolheu ir assim sem nada, estava à espera de escapar incógnito, deixando em casa o peso do passado. Mas ao ir assim sem nada, foi às escuras sem a pasta onde guardava as letras todas do abecedário. Pouco tardou e não sabia sequer o próprio nome. A memória ainda o levou à estação do comboio, mas no guichet quando quis pedir um bilhete, já não o soube fazer e ficou a olhar para o empregado como quem nunca não soubera o que era um diálogo. Sem palavras para a troca, também não soube responder aos nomes todos que todos os homens e todas as mulheres da fila começaram a dizer. Não eram coisas simpáticas, o que por esta altura ele também não sabia. E apesar disso também não seriam coisas tristes ou negativas, porque isso, para ele, representava de igual forma o desconhecido profundo.
Resistiu duas semanas à amnésia das palavras. Sem pão, nem água. Sem amor, um sorriso ou uma lágrima. Morreu. Quando morreu já não era homem. E um homem sem palavra, não chega a ser sequer um animal.

(passem para cá um euro)

Nobel

À página 110 de "A minha herança", de Barack Obama, e à página 46 de "Caim", de José Saramago, confirmam-se as expectativas. O nobel da literatura português escreve melhor do que o nobel da paz estado-unidense. E não acredito que venha a mudar de opinião, terminadas as leituras de um e de outro livro.
Fruto da evolução dos tempos, e quando comparado com Caim, porque as narrativas visam a vida de um e de outro, Obama tem uma existência mais pacífica do que a do segundo filho de Adão. E Barack até passou menos tempo com o pai.
Saramago voltou a apontar o dedo à testa de Caim, como deus já o tinha feito, e as armas voltaram disparar desde todas as brechas cristãs. É uma aceitação dos factos muito pouco católica. É atirar a matar sobre um irmão. Barack, chega aqui um minutinho e traz contigo sais minerais e diplomacia.
E tu até que não escreves mal. O Saramago é que escreve muito. E muitas vezes bem.

Eu vi um clone

O lugar é a bancada central de um estádio, na última fila de cadeiras. A hora é depois das oito e vai durar noventa minutos. O palco é gigante, bonito de ser visto, mesmo a partir de uma altura de dezenas de metros. O palco é verde cor de relva. Chegam os artistas. São 22, puxados por mais quatro. Um destes da frente vem com uma bola na mão. Esse mesmo tem um apito, outros dois seguram bandeiras pequenas e o último está com ar de quem vem para ajudar no que der e vier e pouco mais do que isso. Os quatro são o corpo físico das regras que estão escritas em de número de 17, num livrete com 136 páginas. Nota adicional: as leis, inseridas uma pen, incorporadas junto às baterias do auricular, podem tornar mais competente e menos esquecido o homem a quem uns chamam juiz e outros árbitro e muitos outros gostam de chamar filho de mulher dada ao sexo pago.
Os 22 actores representam dois lados. A cada lado a sua cor. Neste encontro, os que vestem de azul e branco abrem as portas de casa a homens e rapazes tapados por roupa preta dos pés à cabeça.
Nos azuis há um defesa romeno. Quando era pequeno, os pais não o deixavam ir brincar para muito longe de casa. E ele, que agora já tem vinte e tal anos, fica preso ao lugar onde mora. Disseram-lhe para jogar no lado direito da defesa e ele joga no lado direito da defesa. Só aí, porque ir mais para a frente seria como ir brincar para longe de casa e os pais podiam não gostar muito da ideia.
Nos azuis, não posso deixar de reparar num argentino de cabelo comprido. É avançado. E tem dificuldades respiratórias. Dá o ar de quem sufoca, quando está fora de área. Lá dentro, é matemática: pé + bola = a golo.
Há dois camarotes pequenos ao nível da relva. É para os amigos mais chegados e para o administrador da equipa de trabalho. No camarote do lado esquerdo, manda um miúdo de 32 anos. A forma como abre o blazer e deixa a mão esquerda na anca... E a direita levantada para os gestos que dão voz à voz que não chega à parte mais longe do campo... E na sala de imprensa, o jeito como o dedo o indicador direito bate levezinho na mesa, ao lado do pé do microfone, quando os olhos baixam e deixam de olhar de frente os olhos de quem pergunta e espera por uma resposta.
Domingo, no estádio do Dragão, eu vi um clone. Sem ponta de medo cénico, em noite de estreia.

Deus é um bom dentista

A odontologia, quando é trazida a este texto, como é aqui o caso, não vem para dar lições e muito menos aqui está para fazer um qualquer exame oral a quem quer que seja.
A odontologia está aqui para mandar umas bocas. Como aquela senhora de sessenta e quê anos, aquela de pele muito vermelha e de cabelo muito amarelo. Aquela de cú bem gordo, essa mesma, que tem metade das nádegas para lá das bordas (ai que bordas é uma palavra tão mas tão evitável senhor António) do banquinho de praia.
Sentada com cinquenta por cento do rabo, ia dizer rabo, mas é melhor não, porque rabo é uma palavra com muito poucas letras para aquilo que ela pousa desajeitadamente quando está naquela figura com um pé no pinhal e outro na estrada nacional.
Estamos em Esmoriz, e ela, com 50 por cento do pandeiro sentado e 50 por cento vergado pela ditadura da lei da gravidade, está ali também para mandar umas bocas. Diz quem sabe que são 10 ou 15 euros por boca.
Graças a deus, diz como quem agradece em alívio, a meia dúzia de clientes que chega lá dia sim dia não. Sem marcar consulta. Mas com direito a anestesia local.

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...