31.1.10

Carta a um desconhecido

A propósito do lenço que trazes ao pescoço
Tens droga nos olhos. Seguramente terás droga nos bolsos. Vestes um casaco verde da cor da tropa. Estás em pé no apeadeiro da Aguda, no lado poente da linha. [És um homem feio]. Ainda nem deves ter 40 anos . Estás à espera de gente que traga mais gente, de dinheiro que multiplique o dinheiro[É que és mesmo feio]. Essa cicatriz do lado esquerdo da cara, se é para meter medo, deixa-te ficar assim, virado como estás para mim. Escusas de me dar a outra face. Esse tom de pele é vermelho e moreno ao mesmo tempo. Isso deve ser doença.
Enquanto deixas o tempo passar, entre um e outro cliente, enquanto os comboios se fazem ao norte e ao sul, tu, que há muito perdeste o rumo, ignoras por completo a função primária do Keffiyeh enrolado no teu pescoço. Essa peça foi ocidentalizada por via da excessiva exposição televisiva e, cá entre nós, é vulgarizada ao nosso conhecimento com o nome do homem que a vestia todos os dias. Esse lenço Arafat não foi feito para andar ao pescoço . A moda do oeste fez com que ele descesse no corpo, mas o Keffiyeh foi inventado (e é usado nas origens) para proteger a cabeça da exposição solar directa.
Só estava a olhar para ti desta forma para te dizer que tens uma forma acessível de preservar a pele doente. Era só dobrar o Keffiyeh ao meio, na diagonal, para fazer um triângulo. Este sol inesperado de Janeiro não teria como te fazer mal. Como eu não olhava para te fazer mal.
O teu olhar está à espera de um movimento meu para agir. Tenho os braços presos no peso na tua ignorância. Morre ao sol.

29.1.10

O meu primeiro porno

O resto do prólogo
Tinha decidido chamar os bois pelos nomes quando fosse a hora de chegar ao trabalho. Ela não estava mais para aquilo. Entrou na taberna, a do Albano, a pequena, na esquina do fim da rua de casa, perto da paragem do autocarro, a de mesas compridas de madeira. Os presuntos fumavam, a lenha ardia, os homens fumavam e bebiam. Aquilo era uma nuvem, um pesadelo doméstico, um musculado exemplo da vida real. Aquilo era mau para a saúde de quem estava e mau para a vista de quem entrava. Ela passou para dizer que estava farta do emprego e que o ia dizer no minuto a seguir a ter picado o ponto. Foi lá para dizer ao marido que ia chamar os bois pelos nomes. Olhou em frente. Olhou para a direita, olhou para o fundo. Reconheceu-o pelos cornos, pensou, quando o chamou da porta. Américo foi à porta.
A carta do despedimento foi escrita de cabeça no banco que fica por trás do motorista. Era um discurso franco. Teria as palavras de todos os dias. Seria o modo mais cómodo de comunicar a saturação do horário entre a meia noite e as oito da manhã. É que aquilo era o cansaço no grau máximo e salário no enquadramento mínimo. Estava agradecida aos senhores pela oportunidade. Do fundo do coração.
Numa curva mais apertada, a cabeça voltou a desencostar e a bater no vidro. Os bois pelos nomes, os bois pelos nomes, terá dito entre dentes antes de voltar à condição em que dormitava. Aquele sonho já não era a primeira vez que a acompanhava no autocarro para a zona industrial de Pedroso. Sonhava que queria ser puta. Mas uma puta para dar na televisão. Dar na televisão isto é, dar nos filmes, nos filmes, mas não é do cinema, nos das cassetes de video, as cassetes com capas onde as zonas púbicas não andam muito longe do penteado do Marco Paulo. Sorria no sonho quando o sonho chegava a este ponto. Depois corava. A vergonha do que tinha para fazer na condição de puta era de igual forma à vontade com que atacava o primeiro que lhe aparecia pela frente.
Isto não é um hotel. Isto não é um hotel. Pois não é um filme para adultos. O motorista já não tinha paciência para as diagonais que o raio da mulher dava às conversas sempre que chegavam à porta da empresa de enchidos.
Oito da manhã. Oito da manhã. eram oito da manhã quando apertou o último chouriço. Foi ao escritório dizer à mulher do patrão que o podia enfiar por onde bem entendesse, lamentando à senhora o diminuto tamanho sexual do macho da entidade empregadora, solidarizando-se com patroa por todas as fodas de curta duração por necessidade extrema. Se só conseguia manter o posto de trabalho à laia de uma posição onde as pernas se lembram de quando a distância as fez separar, então que assim fosse. Aos 37 anos ia muito a tempo de fazer ver às mais novas.
Ao ir embora, o homem da caixa estava a acabar de meter setenta euros no envelope. Escreveu Samanta Fátima. Senhora de um nome á medida de qualquer catálogo xxx, com uma semana de trabalho na carteira, um homem a cheirar a presunto a roncar na cama lá de casa com uma boca em vinha de alhos, fazia com que uma cena de sexo filmada com um estranho numa garagem mal amanhada se assemelhasse a uma noite de amor num hotel de cinco estrelas. Mal podia esperar pelo baile debutante.

28.1.10

O filme do jogo

É proibido fumar, é, e a proibição assume a forma literal da advertência em situações específicas, mas ainda não chegou ao ponto de venda. Os cigarros continuam a ser comercializados livremente e só por isso não entendo o homem da roulotte. Ninguém lhe estava a pedir um crime por encomenda para ele dizer schiu. Ninguém lhe estava a propôr um golpe de estado nas barbas, e já agora nas incontornáveis barrigas, não há como as evitar neste episódio, nas incontornáveis e inevitáveis barrigas dos GNR de serviço ao jogo de futebol em Freamunde. A coisa para ser assim contada numa noite de quarta-feira, requer, antes de mais, um sopro nas mãos e um esfreganço delas uma na outra.
Ora, avivando a memória: um jornalista assiste ao exercícios de aquecimento de duas equipas de futebol e uma de arbitragem num campo da segunda divisão. São dois ou três pormenores de uma noite onde onde dois ou três graus, por positivos que sejam, e são, não deixam de acrescentar algo de negativo ao olhar do homem da roulotte. Marcou um encontro nas traseiras no estabelecimento móvel. Junto ao tronco da árvore, para tapar a vista de qualquer vista. Só aí, na escuridão absoluta, se tornou visível a deficiência do senhor. Ele não tinha a mão esquerda. A asa do saco de plástico pendia de um lado para o outro, como pendiam os olhos deles em busca de um qualquer intruso. A asa segurava-se mesmo ao meio do coto. Coto não. Era um pulso sem mão.
A única mão deste homem, a direita, vasculhava o interior do saco até ao fundo do saco e era como se no fundo do saco não houvesse fundo, tantos foram os mergulhos, os fracassos e as idas e as vindas sem o maço de cigarros americanos. Num exercício mental, sugeri que o fumador já fumava qualquer coisa portuguesa, para acabar de vez com aquela cena de filme de série b. Pressionei o vendedor para saber o porquê de tudo aquilo. Porquê vender às escondidas tabaco legal ao preço de tabela? Porque sim. Porque ele tinha deixado de fumar vai para dois anos e a mulher podia não acreditar nele se encontrasse uma caixa de cartão cheia de volumes e um saco de plástico atulhado de maços. O contrabandista de ocasião segurou por fim um maço vermelho e branco. Sorri ao senhor a minha melhor solidariedade de ex-fumador. Sem lhe chegar a contar do pressentimento de uma vitória dos vermelhos e brancos, os do Braga, sobre os azuis, do Freamunde. Se ao menos o outro fumasse Português Suave...

20.1.10

Homem temporariamente nú

Hoje em dia, um qualquer ser inocente do sexo masculino corre perigo de vida se por perto houver uma loja de roupa. Não é preciso muito para entrar descontraído e sair de lá vestido de bandido. Se quiserem ir por partes, vamos por partes. Não estou aqui para implicar. Comecemos pelos alicerces. Pelo chão. Pela prateleira mais rente ao soalho. Comecemos pelo pés. Com todo o detalhe de quem não está aqui para enganar ninguém. Como se faz na feira. Aos pés o que é dos pés. E neste caso,o que é dos pés são os sapatos. E os sapatos todos de gangster. São castanhos diarreia. São pretos brilhantina. São quadrados, são em bico. São perfeitos para deixar um avançado em fora-de-jogo. À margem das regras. Marginais. Lá está, de gangster é o que são. Pé esquerdo e pé direito, hoje não há prenda nem para um nem para o outro.
As fundações de um homem que por acaso se quer vestir e entra numa loja de roupa, arriscam-se a não ter pernas para andar. Falemos de calças. Se fosse para ter o cú à mostra não as vestia, nem as tinha em necessidade de comprar. E uma tira de veludo da anca ao tornozelo hoje não, porque não é dia de comunhão solene, nem há vagas para paquete no centro de emprego. Isso... atirem-me essas de ganga pós lixívia ou pedra pomes... Não estamos aqui para assaltar ninguém, muito obrigado. E entregamos à menina do atendimento o cliché pernas para que te quero. Uma frase que o português só diz para trincar a própria língua.
Vamos às camisas. Não sendo toureiro, elder, mesa de cozinha ou cortinado, a coisa tende a fugir para o complicado. Para já não falar daquela camisola. Já vi aquele padrão em algum lado. Já sei. Foi em casa da minha mãe. Por cima da televisão com caixote de madeira. Em 1983.
É impossível ir embora e não reparar naquele casaco à prova de bala, tipo bibendum. Ou no blazer de corte igual ao do anão da ilha da fantasia.
Olhe, desculpe, onde fica a secção de homem?

19.1.10

ομπρέλα

O hotel acolhe a totalidade do número 8 da Rua Monastiriou, em Salónica. Oito portugueses avançam conversadores uns com os outros através do hall, na direcção do inverno grego, vestidos pelo rigor da estação. Enfrentam a temperatura negativa da manhã de dezembro com o sorriso mais positivo que o semblante consegue arranjar. Ao saírem do hotel, deixaram ficar a porta a aberta. Parece que são de Braga. E são mesmo. Vieram de Portugal no voo charter encomendado pelo clube da terra. Um outro português, observador e narrador desta história, decide aproveitar a embalagem da corrente de ar e sai de casaco fechado até ao nariz , nariz que a partir das dez da manhã vai passar a ser da cor da camisola do Braga. Ele, como é de Gaia, decide fechar a porta.
As portas podem ser o meio a utilizar para abrir Salónica e trazer parte da cidade a este texto. Porque porta-sim-porta-sim o comércio chama pela rua. E quando a rua decide não ir, o comércio decide trepar paredes. Isto não é uma figura de estilo. É a cidade que vende a não querer ser esquecida pela cidade que pode comprar. E eu, mesmo não sendo dali, nesse dia sou. Pelos menos ao olhos dos vendedores.
Esta parede em frente está decorada com casacos de pêlo, casados de pele e binóculos. Tem medalhas da tropa, tem capas de disco. Tem um homem velho sentado num banco mais velho. Ele tem olho para o negócio, repara em mim, puxa-me para dentro, conta que o outro olho ficou na guerra com uma só palavra: war, war.
Faço gestos para dizer o que quero. Ele gesticula para dizer que tem. Deixa-me uma camisola de lã nas mãos e não é isso. Devem ser os meus gestos. Volto a fazer devagar. Ele diz que sim, mas vem de trás do balcão com umas botas. Começa a falar muito alto e entra mais gente, todos pensam neste estrangeiro como alguém capaz de estar a tentar pôr a mão na caixa registadora. Não estava. Estava só a chegar a prateleira onde estava o que eu queria. Peguei, pousei o objecto. Levantei o braços como quem diz paz. Rocei o polegar no indicador e no dedo médio a perguntar quanto é. O homem com olho para o negócio abriu a mão direita para dizer que eram três euros. Calculei que os outros dois dedos tivessem ficado na guerra.
Esses dois dedos de conversa, constam de um episódio com mais de três anos. Regressaram a mim pelas portas da fortaleza de Valença, à porta de uma loja onde um vendedor boliviano aponta a pistola aos presumíveis clientes. A pistola é de plástico e faz ondas intermináveis de bolas de sabão. Aponta à minha namorada e eu disparo. Guardo o momento na máquina fotográfica. A seguir entro com ele na loja e compro, pela segunda vez na vida, um guarda-chuva(ομπρέλα ).

15.1.10

Em nome próprio

Regresso com a mão esquerda encostada ao nariz e o ombro do mesmo lado encostado ao queixo. Regresso com direita igualmente de punho cerrado, sobre esta barba assimilada pelo rosto nos últimos oito dias.
O pé esquerdo é uma âncora cravada no chão. O direito comporta-se nos vícios de quem apaga um cigarro. O calcanhar fica suspenso. É para o caso de evitar uma queda no caso de o primeiro golpe sair de algum daqueles que estão diariamente a apregoar combates imaginários. Chegando mais perto, a dimensão de cada um dos elementos do exército de cobardes não chega a provocar espanto. A pequenez do cobarde permite-lhe cobrir-se, dos pés à cabeça, com uma página de um jornal.
Em nome próprio, eu António, descalço as luvas e faço a saída por entre as cordas. Quando o encontro de palavras tem de ser com gente que só é gente por ser amiga do amigo do amigo do amigo influente, a resposta sai melhor numa folha em branco. As letras ficam guardadas no corpo.

7.1.10

Todos os verbos

Para começar, nascer até que não está mal. Mas está. Se for para começar como deve ser, o verbo tem de ser um de dois: amar ou engatar. Pegando no segundo, convém ter a gramática aberta no verbo abrir, porque é isso que vai acontecer, depois de o pai convencer e a mãe anuir e depois de os dois se dedicarem ao tocar. Reza a história que haverá a seguir uma constante indecisão entre dois outros verbos: o entrar e o sair. Até que... numa perspectiva mais clínica do evento, se chega ao verbo ejacular, verbo esse conjugado apenas pelos mamíferos do sexo masculino. Mantendo o tom clínico, e para que a mulher não se queixe de ficar sem um verbo para ela, deixemo-la entretida com o fecundar . É coisa para a deixar ocupada durante nove meses.
Posto isso, então sim. Aí vem, careca, sem pelos nem dentes, de olhos quase fechados e em modo de choro, o tal verbo nascer. Diz que é o princípio de tudo. Sendo sobretudo, nos primeiros tempos, o expoente máximo do mamar, chorar, do comer, do mijar e do cagar. São os primeiros passos de uma etapa baptizada, por unanimidade, com o verbo crescer. Gatinhar, andar e falar estão para quem nasceu como limpar está para quem fez nascer.
A vida é todos os verbos. Quem não sabe conjugar sem cábulas o verbo doer? Mente quem diz que não e isso só o(a) fará sofrer ainda mais. Felizes de todos aqueles que encontram, nem que seja por uma uma só vez, o sítio onde os dias tiram férias para amar. E valha-nos as gargalhadas do rir e os momentos de verão em plena tempestade do sorrir. Nunca esquecendo que tudo isto é para morrer. Mesmo para quem se está pouco a foder.
PS: Verbos como matar, roubar, enganar e violar dão pena de prisão. A igreja diz que cobiçar também não é lá muito bonito.

3.1.10

Sorry honey

O futuro queria ter visto a gaivota naquele amanhecer de Março. Quando os ponteiros do relógio se alinharam e o sol entendeu estar na hora de fazer quebrar o gelo. Queria ter visto a envergadura das asas, abertas na forma de quem se prepara para abraçar com saudade o momento em que se regressa. Queria ter visto a sombra a crescer no chão e a gaivota a descer no ar, com o ar de quem chega ao lugar de onde nunca devia ter saído.
Nessa estação, o sol aproximou duas bocas. As duas bocas vinham de um deserto onde o tempo repousa quando tem tempo. Beberam uma da outra, souberam de si, sorriram e por fim regressaram devagarinho ao lugar onde se tinham reencontrado.
Antes de se aventurar no mar, uma gaivota conta a todas as outras gaivotas da praia, ter ouvido a história de dois humanos e jura ter escutado qualquer coisa sobre um encontro marcado entre eles para uma troca de olhares no corredor das bolachas de um supermercado.
O futuro entra de rompante na conversa para dizer que o tal encontro nunca chegou a acontecer. Mas acrescentou, o futuro, quando se meteu na conversa, que o rapaz dessa história passou ontem a correr nesse mesmo corredor. E que quando por lá passou, viu um frasco de mel caído, partido e derramado no chão. E que ao passar disse sorry honey.

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...