24.2.10

Uma frase. Ou duas. Ou mais

Gosto de todas as pessoas que nas zonas da fronteira da loucura, muito calmamente conseguem sorrir, mostrar o passaporte de maluco e deixar para trás sem remorso o estado politicamente correcto da normalidade. É como respirar depois de sufoco prolongado. É viver, portanto.

20.2.10

O meu primeiro porno

A gravidez de Álvaro

Álvaro está sentado. Vem na fila da frente, no lugar encostado ao vidro, onde a linha do horizonte é cortada pelo ombro do motorista, pelo pescoço e pela cabeça deste. O cabelo rapado exibe a orelha esquerda, mesmo por cima do azul escuro do casaco e do azul claro da camisa. A orelha mora muito longe da face, apercebe-se Álvaro, enquanto se perde na dúvida residual sobre se o que está em causa aqui não será antes o cabelo demasiado curto. Sem paciência para acertos estupidificantes de raciocínio, Álvaro vai ao bolso de dentro do sobretudo. Do lado onde o coração bate com um aperto doloroso, Álvaro retira o Ipod com a mão direita. Segura-o com a esquerda, apoiada nos joelhos. Faz deslizar os dedos da outra mão na superfície de vidro. A meio de uma viagem de autocarro entre o Porto a zonas mais a sul de Vila Nova de Gaia, a tecnologia abre-lhe um mundo novo na palma da mão. Um mundo virtual bem mais interessante do que o respirar de todas a vidas anónimas daquela camioneta de carreira, importada de leste na véspera do dia em que devia ter sido encolhida, primeiro, e empilhada, depois, num cemitério de chapa erguido até ao sítio onde dizem haver a fronteira do céu.
O toque dos dedos no vidro do Ipod, conduzem Álvaro até uma janela imaginária, de onde espreita para um lugar distante, e onde se vê numa licra bege apertada, sobre patins brancos com lâminas, numa pista de gelo, durante o solo de um concurso de dança. Álvaro é um homem que gosta de homens, mas que por causa dos homens já sofreu mais do que qualquer mulher dos livros dos autores nos dois séculos imediatamente anteriores a este.
Álvaro quer engravidar a todo o custo. Decidiu isso ao fim da tarde. O fim da tarde foi há um quarto de hora, quando os minutos de espera pelo autocarro lhe mordiam os pensamentos, não muito longe da paragem na Praça da Batalha. Abrilhantado de espírito pela ideia de última hora, Álvaro estava de plena consciência à beira de ter conseguido a fórmula secreta para manter o Ricardo para sempre naquela relação que estava doente mas que não seria nunca doentia, no entender do próprio.
Ia engravidar. E ponto final. Nada nem ninguém o poderiam convencer do contrário. Não havia volta a dar. Nunca, em toda a vida, tinha passado por um estado de convicção semelhante. Pegou no Ipod e iniciou a navegação por entre milhares de aplicações. No espaço destinado a se escrever o objecto da procura, Álvaro escreveu o que queria. Ia fazer o download de um útero. Mas não o ia fazer já. Esperaria pelo momento em que estivesse em casa e faria tudo como tinha de ser, na presença do Ricardo.
Sentado num banco de cozinha, a olhar para uma revista de mulheres nuas, Ricardo dizia-se apenas interessado no corte dos fatos de banho e dos biquinis. Ricardo disse-lhe também para aproveitar e fazer o download de uma vagina, porque pelo cú, eram capazes de não lá ir.

17.2.10

Coincidência

Atendi ao pedido à segunda tentativa. A pergunta repetida queria uma resposta para a dúvida sobre como é que se escreve coincidência. Com cê curvo. Com ésse, não. Disse as letras a sós. Uma a uma, para evitar confusão. E porque depois disto, era uma vez uma dúvida, a rapariga segurou o telemóvel senhora de uma outra confiança, para escrever qualquer coisa sobre coincidências. Dizer que foi numa noite de Carnaval, pouco ou nada acrescenta ao caso. Que pouco ou nada se acrescente então: foi antes do jantar da noite de Carnaval.
Na noite a seguir à noite de carnaval, o rapaz que respondeu à rapariga está em casa. A televisão repõe um filme sobre comportamentos obsessivos e compulsivos. Antes do fim da segunda parte, uma senhora com ar para ser mãe e avó, responde a uma senhora com ar de ser filha e mãe. A mais noiva das duas estava a redigir uma carta de agradecimento e perguntava como é que se escrevia coincidência. A mais velha, mãe da mais nova e avó do ainda mais novo, soletrou a palavra: c-o-i-n-c-i-d-ê-n-c-i-a. A filha escreveu tudo direitinho para agradecer ao médico o facto de estar a ajudar o filho doente, o tal que aparece antes descrito como o ainda mais novo.
E eu, de cama há quase dois dias numa semana que é de férias, tento encarar com naturalidade a simultaneidade de diversos acontecimentos. É o que o dicionário diz, quando fala em coincidências.

15.2.10

A República Portugueza

Onde era pedra, branca e negra, é agora chão de mistura: areia, cimento e água. Os passos sucedem-se, pé ante pé, sobre a avenida dos Aliados, a descer. O Porto por aqui abaixo revela-me todos os elos da origem das espécies. É uma mulher com mais ar de homem do que eu. É um homem com mais ar de animal do que o cavalo da estátua de D.João IV. É por fim, onde me detenho, uma Praça da Liberdade. Por ali acaba de passar um homem vestido de mulher, mal vestido de mulher. E ao chegar aqui, ao sítio onde um homem veste o sexo diferente, das duas uma: ou é de noite e estou a passar pelo edifício do Jornal de Notícias, ou então é mesmo uma tarde de domingo e hoje é dia de carnaval. O frio levou os sorrisos de todos os rostos. Nenhum termómetro consegue acrescentar um grau que seja a esta história. A temperatura é de quando o tempo regressa à estaca zero.

Eram três horas da tarde. Era o dia dos namorados. O homem quer passar pelo quiosque para comprar o jornal que há-de ler ao café. A mulher diz que sim e que não se quer esquecer de uma revista para ler entre a torrada e o chá. Compram o jornal na rua de Sampaio Bruno, em frente à Casa da Sorte, onde o chão ainda é às pedras brancas e negras. E aí o azar bate à porta, ou então foi o nariz, porque o café está fechado. Desde ali, até ao lugar onde o carro está estacionado acontece o primeiro parágrafo do texto. Vamos ao terceiro.

Um namorado, no dia dos namorados, leva a namorada à cadeia. Dirão já as mais impetuosas almas que o romantismo, tal como o azar, ficou à porta. Mas isso seria como meter o nariz onde não se deve. Porque o namorado vai pagar a ousadia em croissants e torradas, ao lanche, e rosbife mais tarde, ao jantar. Mas não saltemos já na cadeia dos acontecimentos. Vamos à cadeia da relação. Ao Centro Português de Fotografia. À exposição Resitência, sobre o tempo em que a república portuguesa ainda se escrevia com zê. Vale a pena a visita. Ao fim de uma hora entre a alternativa republicana e a luta contra a ditadura, em imagens a preto e branco, porque não sair de lá com um colorido disparate onde se diz que nos séculos anteriores os presos viviam numa casa muito bonita.

Ao lanche, também houve café com leite e chá gelado, este último pedido por favor numa embalagem de temperatura natural. Ao jantar, os líquidos vinham de lambreta, quando eram vinho de pressão, e numa lata, mais destinada aos refrigerantes.

A noite ia acabar no Coliseu do Porto. Nada como um concerto para fechar um dia desconcertante, fica sublinhado o registo em português preguiçoso. Onde a língua chora como uma bola o faz quando é maltratada. Isto de se entrar no Coliseu e de se começar a falar de futebol confirma o facto de estarmos em Portugal. Ou então a culpa é da camisola do guitarrista. Tem todos os losangos utilizados pelo Paulo Bento e mais um. Pior está o teclista. Arrisca uma chicotada psicológica. E é o que lhe vai acontecer quando a mama direita da menina mais gorda do coro lhe acertar na cabeça. A ele ou ao senhor que controla os bilhetes para entrada na plateia. A mama esquerda já desceu do palco três ou quatro vezes.
Indiferente a tudo isto, a Joss Stone dança com o clitóris. A voz ferra os ouvidos antes de chegar à alma.

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...