28.4.10

O antigo fiscal do mercado de Vila do Conde

Da lista de coisas que um homem não deve fazer ou dizer em público, esta vem à cabeça e menciona a proibição das lágrimas no sexo masculino. Mas não me contenho e não as contenho: ando com vontade de chorar desde ontem à noite.

Vai fazer cinco anos em Maio. O antigo fiscal do Mercado de Vila do Conde já está meio impaciente quando lhe chegamos à porta. A velhice em vez de lhe ter levado o cabelo, pintou-o de branco. A pele tem a cor saudável da beira-mar. Está muito bem posto para um homem de 70 anos. Nesse dia de 2005 talvez estivesse mais consumido pelo nervoso miudinho, é que a televisão quase não o via sem ser a preto e branco e sem ser um homem dos anos sessenta, de calções e camisola de manga curta, de meias pelos joelhos, com uma bola branca na mão. E ele, mais baixo do que a bandeirola de canto, juraria nesse princípio de tarde e a pés juntos, que quando pé direito encostou da bola disse logo :"é golo". Estamos a falar da única vitória europeia do Sporting. Estamos a falar na final da Taças das Taças de 1964, em Antuérpia, com o MTK da Hungria. Estamos a falar do cantinho do Morais. Estamos a falar com ele.

O céu de Vila do Conde partilha nuvens brancas sobre um fundo azul pálido. O lugar é o parque da cidade e ao lugar chamaram Parque João Paulo II. Sigo pelo carreiro e tenho ao meu lado o João Morais. Ele recusa qualquer ajuda ou amparo para fazer o percurso. A perna esquerda cedeu à passagem do tempo e faz uma curva para fora. O ângulo do arco podia ser o mesmo daquel eem que a bola saiu do pé direito, num canto batido à esquerda do ataque, e foi morrer junto ao poste mais longe, onde está a parte lateral da rede da baliza. Por momentos não estou em mim. Sigo passo a passo em confidências sobre futebol e a vida com o homem que um dia deu a Sporting a primeira e única taça europeia. 

Ontem à noite o telefone tocou para dizer que o Morais tinha morrido. 
Andei com a fita das cassetes para trás e para a frente para me lembrar que o João, que insistiu para o tratar por tu,  deixou o Sporting em 1969 e que esteve 36 anos sem pôr os pés em Alvalade :" só vou onde sou convidado". 
Quando estamos a falar do golo, do cantinho do Morais, ele diz que o golo não é dele e que o disse logo no campo quando os companheiros iam gritando ei grande golo: ""Não foi meu. Foi de nós que estamos aqui e dos que estão ali no banco". Sobre os leões no presente, dizia apenas isto: "eu não devo nada ao Sporting. O Sporting é que me deve a mim".

Nesse dia o João tinha 70 anos e estava aposentado. Despedimo-nos com um abraço e jurámos marcar um almoço que o tempo acabou por não confimar. Lembro-me de ter ficado todo empolgado para ouvir  no encontro seguinte as histórias do homem quando o homem era o antigo fiscal do mercado de Vila do Conde. Contaram-se cinco anos desde esse dia... muito mal contados, diga-se, agora que os segredos já não respiram.
Até sempre amigo

20.4.10

Obras

Quando o sol chegou para o almoço, apontado chão na vertical, cinco homens largaram as mãos do trabalho e partiram em dois grupos. O martelo e o cinzel de cada um ficaram pousados no chão, por cima dos blocos rectangulares de granito; de cada um , e de ferramentas falando, só as fitas métricas e os lápis evitaram ficar ao abandono: umas de pendura no bolso das calças e uns como se fossem a única haste de óculos imaginários. São as leis da natureza do código genético de um trolha.
O mais pequeno dos grupos, não era bem um grupo, só tinha dois homens. As rugas na testa do mais moreno diziam a quem passava um dado adquirido nas observâncias da dor: a fome, em determinados estados psicológicos, é um conceito inexistente. E por mais que o corpo esteja a ir à vida, uma cabeça dorida só tem nevoeiro diante dos olhos. O mais baixo e mais branco - e mais gordo - dos dois, ficou por perto, trocando a marmita pela força, a comida pelo apoio ao amigo. Estiveram dois minutos, sentados de lado para o mar e frente um para outro, a conversar com o volume adequado às palavras ditas em segredo, que nada, mas nada tinham a ver com o barulho do martelo no cinzel e do cinzel no granito. Desceram os degraus da meia laranja da praia da Granja e foram partir pedra. Em todos os sentidos atribuídos à expressão. 
Neste inverno, particularmente neste inverno, o mar cantou uma letra do Carlos Tê, alterando aqui e aqui o refrão, roendo uma laranja da falésia. Desfazendo a costa da Granja e em particular os degraus em pedra da meia laranja.
O outro grupo entrou numa carrinha branca e distribui-se da seguinte forma: um homem por cada uma das filas de bancos da Transit de nove lugares. A marmita de metal encostada ao volante tinha a sopa que a colher levava à boca. No meio, na tira de lugares mais escancarada pela porta de correr, uma cerveja sugada pelo gargalo estava na hora de se transformar em arroto. Da fila de trás só se ouvia a língua no céu da boca, se é que àquilo se pode chamar mastigar.
É provável que obra fique concluída antes do fim da primavera. Há quatro anos, em França, num estúdio de gravação, sem martelo, lápis, cinzel ou fita métrica, um grupo de músicos, de cantores e de cantoras, pegou numa série de músicas por eles escolhidas e realizou as obras necessárias até ficar concluído um disco chamado Band à Part. Hoje levei-o para correr comigo, protegido por um Ipod, e ele foi a banda sonora para o clip de imagens fornecido pela casualidade do percurso. Num dos troços de piche havia um cd partido, parecido com um queijo com uma fatia a menos. Esse nem os Nouvelle Vague conseguem consertar. E os senhores da Granja ainda menos.

19.4.10

Veraz

Hoje. Hoje tomaste por decisão a vontade em dar ao corpo a ordem de perder quilos. Hoje, já agora e posto isso, talvez fosse preferível fazer emagrecer o conteúdo das frases, limitando-as ao estado suficiente, a respeito do nível de entendimento.  Hoje, em continuando assim, não vai dar para lá ir, ao lugar onde se esclarecem circunstâncias. É como se houvesse a necessidade de se dizer sempre azul mais amarelo quando se quer dizer verde. Entrega às frases a mesma solução encontrada hoje de manhã para resolver o corpo. Põe o texto a suar. Faz da verdade um fogo sem artifício.
A realidade é que o título foi encontrado por acaso num romance espanhol, repetido ao longo de linhas  e reaparecendo em páginas diversas, afirmando e reafirmando que "só o artista é veraz". Verdadeiro. Que diz a verdade, conta o dicionário quando se põe exposto diante dos olhos.

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...