30.3.10

Elisabete de Nápoles

Nesta novela de época, quando os barcos se apontam ao  mar e os panos caem das retrancas, lá no fundo da imagem do porto, está com ar de morto, o homicida natural de Pompeia: o Vesúvio, o único vulcão da europa continental. Nos dias em que a terra lhe dizia para  mergulhar no mediterrâneo, ninguém queria ficar para ver, que isso de ficar para ver era esperar para assistir à própria morte. Foi num ano do meio do século XVII que famílias inteiras rolaram das montanhas com a pressa de quem vai à bolina do destino, seja lá ele onde for, sendo que neste caso uma carraca portuguesa estava a levantar a âncora, de uma viagem em que vinha da Índia e que iria ter fim na alfândega do Porto. Corridas pelo ralho do Vesúvio, famílias vieram em cima e ao lado dos sacos de especiarias. Entre elas vinha Elisabete, jovem mulher de uma cidade mediterrânica, que se presumiria ser de pele tingida pelo sol e de cabelo negro com a lava do vulcão. Acontece que não. O feminino da nobreza tinha estado guardado num castelo, prometida que seria a um príncipe. Como o sol não sabia saltar para lá das pedras, nem tinhas a chave dos portões de madeira, a pele de Elisabete era pouco menos branca do que o vestido que hoje veste. Os cabelos tinham sido amarrados para lhe fazer mostrar o rosto e os cabelos tinham a cor do ouro. Reza a história da carraca portuguesa, barco de transporte de mercadorias, que o bem mais precioso de um Fernando teria saído do porto napolitano em mil seiscentos e qualquer coisa.
Fernando espera junto a uma mesa, a meio de um relvado, com os olhos dividos entre o relógio e a entrada da quinta. Às tantas a espera já parece ser de séculos, quando do nada surge uma marcha nupcial e com ela vem uma loira vestida de branco. Dirá a senhora do registo civil, para surpresa de quase todos, que a noiva tem nos nomes o nome de Elisabete de Nápoles. E que o noivo Fernando também é Agostinho. Os amigos sorriem e eles, alheios e felizes, beijam-se e parecem trepadeiras. Quem não os conhecer, dirá que não se viam há uma eternidade.

29.3.10

Ainda há homens que casam com mulheres

Quando a música chegou ao fim naquela vez, o disco tinha tocado dez vezes. A música era o ar. Invisível como ele, sem cheiro, sem a menor hipótese de consideração palpável. E o coração, se o coração fosse igual aos pulmões, então o coração enchia e esvaziava, respirava música. O homem com coração melomaníaco teria de viver longe, numa terra de sonhos, no lugar onde  os sofredores vão de olhos fechados como se nos pés tivessem vagas e essas marés fossem um chauffeur com chapéu alto e fraque. Nessa aldeia as canções nunca chegam ao fim. O rio é o maestro. As árvores da avenida por onde se entra na terrinha tocam violino e o vento é o arco. Costuma haver velhos carros sem dono sentados ao piano, porque ao piano esquecem a pessoa que um dia foi embora e deixou o vidro aberto, com a chave dentro e a alavanca em ponto morto. Os candeeiros à noite misturam flautas e clarinetes. Há quem dance como se a dança fosse a cura a para a loucura. E há quem escreva sobre a evidência de haver  homens que ainda casam com mulheres. O Alberto já tinha feito matéria de prova. E ontem foi a vez do Fernando esperar pela Sandra num altar a meio do jardim. Ainda há homens que casam com mulheres, que as levam de volta à terra dos sonhos, ao dia que em as ilusões cabiam todas no interior de um vestido branco.

PS: obrigado sentido ao Fernando que nos arranjou duas extraordinárias noites pelo motivo de se ter casado

21.3.10

Nem sabes de que terra és

Realidade, esta é a ficção. Ficção esta é a realidade. Considerem-se apresentadas, as meninas, sim, e venham daí para uma volta ao mundo em 48 horas, ou se acharem melhor assim, em duas noites na cidade do Porto e zonas circundantes. Para que vejam, quanto mais não seja, como foi possível sobreviver a isto.
A história termina já aqui, a meio da tarde de domingo. O retrato robôt  do princípio do fim acontece no edifício da Alfândega. A história termina na fila para a máquina de café, oferecido pelas colegas de trabalho do George Clooney. Chega uma mulher com ar de outono, na roupa no cabelo e no rosto. Reforça o ar da estação ao perguntar se a menina tem daqueles (cafés) com sabor a castanhas. Café com sabor as castanhas? Porque não comer castanhas mesmo? Quem toma um café é porque precisa mesmo de tomar um café. É que no caso de ser para procriar aromas, era um formulário de reclamações por favor e escreva-se nele a pedir um lote de café com aroma a mulher do próximo. Ponto final. Fim de história.

Isso foi o fim. No princípio foi uma visita a um lugar de acesso restrito, ao qual, alguns amigos, têm o vício de chamar estábulo. E como quase todos os vícios... está mal!! O lugar onde, principalmente mulheres bonitas, mas também homens bonitos, se reúnem imediatamente antes de um desfile de moda, chama-se bastidores. Estábulo não. Percebo (e sorrio perante) o engodo machista da abordagem, mas estábulo não, digo confessando não ter conseguido parar de achar piada à metáfora. Mas os bastidores estavam assim quando lá cheguei e assim ficaram quando de lá saí: roupa, manequins, secadores, cabeleireiros, maquilhadores, estilistas, costureiros, modistas, manequins, cigarros, cabides, cabides, manequins, cigarros. Nervos e euforia. Ansiedade. Talento. Gente nua, gente vestida. E umas coisas que não sendo mulheres, definitivamente não eram homens.

Esta conversa de homens e de mulheres faz a ponte de sexta para sábado à noite. Um homem deixar de ser solteiro é o motivo. É o motivo e a desculpa. Para lá de vinte desculpas que vinculam um grupo de homens a uma ida a uma casa de meninas devidamente prevista por lei. Entenda-se por isto a aprovação imaculada de namoradas e esposas. Aqui vem ao texto aquela frase que diz qualquer coisa sobre o que acontece em Sermonde fica em Sermonde. Uma filosofia que segundo consta já chegou aos Estados Unidos. Consta. Relate-se então, manietado pelo compromisso masculino, um único facto. Houve alguém com noite de estreia na mui prestigiante actividade de anunciar shows eróticos. O vosso forte aplauso para...

E o que é que se passou entre uma e outra noites? Passaram-se dois jogos de futebol. Quer num, quer noutro, o rapaz de um metro e cinquenta e saia verde da Alfândega do Porto, se lá fosse a dizer que ia dar uma perninha, iria ter dificuldades em entrar para qualquer um dos clubes. Quando muito era uma corrida subordinada ao tema nem sabes de que terra és.

12.3.10

Células mortas

mais um fascículo da colectânea O meu primeiro porno

Álvaro era o arquitecto da matemática dos afectos. Ia fazer 28 anos ontem. Não fez porque o companheiro de estrada, de tecto, de cama nem estava para aí virado. Foi perguntar à verdade, só para confirmar, e a verdade disse que o Ricardo tinha esquecido, por completo, devido a uma branca de tamanho superior ao de um porta aviões, o aniversário do namorado. Depois de ouvir a verdade, enquanto esteve sentado na sanita,  Àlvaro fez o caminho de volta para cama ao ritmo do cortejo que encaminha o caixão para a cova. Deitou-se de costas na campa. Puxou os cobertores só para sentir o peso da terra. O amor tinha acabado de morrer. Calhou a sepultura ter sido escavada no último lugar onde tinha acontecido a ligação dos corpos pela parte física.A junção humana não tinha atingido o toque invisível. Tinha sido só matéria. E ele a pensar no lugar dos livros das histórias felizes. A seguir aos eucaliptos, a descer para o rio, virado a poente, junto ao relvado mais penteado, para o baile dos sentidos.
Álvaro e Ricardo eram células mortas. Um mais um estava a ser igual a zero. Concluiu, confirmando a singularidade da matemática dos afectos. Na escuridão da tumba, puxar o cigarro para os pulmões fazia acender o vermelho. A dor parava. Mas nem assim o peão andava. Amanhã. Amanhã seria um bom dia para fazer 28 anos.

10.3.10

O meu primeiro porno

O rapaz das luzes

Quando arrancaram para a gravação do primeiro take, a nenhum dos quatro homens presentes na sala foi dada a ordem de acção. Geraldo Wolf percebeu o ridículo da situação, quando num antigo garageiro de motociclos, com o comprimento de um campo de futebol de salão, se predispôs a encostar os lábios ao megafone para dizer acção a uma senhora mais velha do que setenta anos, protagonista e solitária ocupante da cena dos anos mais tarde de ex-actriz de filmes com conteúdo adulto. Pornográficos. Filmes de foda, para cortar com as tretas e dizer o que realmente está ali acontecer, antes da gravação ter ficado bem à primeira e antes de poder dizer corta.  
A velhota, velha mas não surda, ia guardar um raspanete para depois porque o megafone levou-lhe o coração até à ponta dos mamilos com o susto. Como uma profissional, calou sem consentir, abandonou o lado da garagem onde uma cama era suposta querer dizer um quarto, avançou pelo meio de dois cobertores que tapavam as motorizadas e onde era suposto ser o corredor.Caminhou em direcção ao quintal, aos cães e às hortênsias. Parou junto ao muro. Encostou os cotovelos e as mamas sobre os tijolos, porque uns e as outras há anos que não encostavam sem a companhia mútua. Olhou na direcção mais longínqua que os olhos conseguiram, seguindo a indicação do realizador Geraldo, sendo que no caso dela, o mais longe que os olhos iam era um metro à frente do peito e isso num dia limpo. Apesar da desventura pessoal da idosa do filme, porque no filme era uma idosa e não uma velha, apesar disso, a postura do queixo elevado, com a expressão esforço dos olhos, serviam à cena na perfeição. O que dali se queria era passar a mensagem de pensamento profundo e uma viagem ao passado, para depois acrescentar uma acrobacia qualquer de uma rapariga sobre um pénis em estado sólido.  Se a velha não via um caralho, não vinha ali ao caso. Bem, vir vir até vinha, mas a simulação passava com distinção o argumento arquitectado na cabeça do Geraldo e por isso ele disse corta.
Corta bem na hora. Geraldo desceu na cadeira de ráfia, e qual imaturo operador de imagem a acetrar o zoom, vagueou pela antiga garagem de motos à procura da casa de banho. O aperto era tanto que não via mais nada à frente. Deixou-se levar pelo cheiro e não demorou a acertar em cheio. O metro quadrado forrado a azulejos anteriormente conhecidos por brancos tinha alguém lá dentro. O rapaz das luzes, mais conhecido por moço que segura o único foco, estava a acabar de fazer o que Geraldo ia tentar fazer. Enquanto voltava as costas à única retrete do estabelecimento, calhou vir com a mão direita num sítio que ele via todos os dias, mas que ainda não tinha visto como gratificante fonte de rendimento. E quem melhor do que o realizador para ter olhos para a coisa. Geraldo gritou pelo Ricardo e pediu quietude de estátua aos rapaz das luzes. Ricardo chegou com os óculos colados à prancha do argumento na dizer "o que é?". 
Estava encontrado o protagonista do primeiro filme pornográfico feito a meias entre um realizador austríaco quase surdo e um argumentista português que nos últimos tempos começava todas as conversas com um dramático estou a tentar deixar de ser maricas.
Ricardo exigiu mais tempo de pose de estátua ao moço. Disse-lhe que a partir de hoje, quando a câmara apontasse sobre qualquer ângulo daquele chão encardido com óleo queimado, ele que não esquecesse que quando falassem em Taco Bandeira estavam a falar dele, com ele ou para ele. 
Com a mão esquerda na prancha e a direita na caneta, Ricardo tremeu de alto abaixo, soava-lhe a obra prima, a ideia de criar um episódio chamado "A ternura dos quarenta centímetros". Taco Bandeira sorriu. Era um sorriso vaidoso. Aceitou o nome e o novo cargo de olhos fechados. De dinheiro se falaria mais tarde. Até porque Geraldo ia empurrado por uma velha, avisado do mal dos sustos na sanidade mental das pessoas.

8.3.10

O meu primeiro porno

O reencontro de Ricardo com o corpo de uma mulher 

Instado a sair das calças, pelo teor da conversa, saiu sem ter perguntado ao dono se podia, se a altura era a mais adequada ou se a companhia do dono, apesar do tom erótico do diálogo, estava disposta a ver o homem que o rapaz guardava no interior de uns boxers justos em algodão. Assim saído, do conforto do lar, a parte mais masculina do corpo de Ricardo só aí se lembrou de pensar  se porventura não estaria a encarar o meio ambiente num local público. Não estava. Recuperou de uma flacidez instantânea para de novo se erguer sobre e exacto decote das nádegas de uma mulher mulata, deixado a nú entretanto pelas mãos atabalhoadas de Ricardo. Faltava ali qualquer coisa e ele não estava definitivamente a esquecer a ideia de que num corpo feminimo partes há que se subtraem e outras que se adicionam. 
A mulher, apoiada nos cotovelos, fez o que pôde para afastar a conversa da proximidade do esfíncter. Estava porém convertida a uma submissão imprevista, numa daquelas  situações onde se pressente que nao há nada a fazer. O apéndice frontal, esse que confere a Ricardo o estatuto de sexo maculino, aproveitou a altura exacta em que o rabo da senhora abriu mais a boca para dizer não. Ricardo sentiu-se chegado à terra prometida. A cidadã anómina já só esperava que ele não tivesse chegado para uma estadia de três dias com direito a pequeno almoço. Ao mesmo tempo, a experiência de mulher astuta também lhe dizia que o senhor que tinha acabado de entrar não iria resolver aquela questão com  uma investida de cinco minutos à Benfica. Tinha duas formas de encarar o momento: a bem ou a mal. Escolheu a primeira hipótese.
Ao volante encorpado de uma mulata quarentona, Ricardo, moço expedito era dotado de um raciocínio somatório. Uma coisa dava sempre lugar a outra. Neste minuto viu-se a pensar na segunda-feria de manhã, à cata de umas calças de ganga e uma armação para os óculos, no interiror de um bazar chinês. Ricardo era um rapaz de conclusões prontas. Sempre que a prontidão ficava em maioria nos vagueios do cerébro, o sexo dava de caras com o verbo acabar. Lançou a semente em terreno infértil. Da casa de banho, para o quarto,  disse, com as mãos e o detergente sobre a zona genital em quarto minguante. Lá disse no esfreganço, para a mulher, que em poucos anos o mundo ia ser todo duas coisas. Ela disse que sim mas também podia no fundo estar a dizer que não. Foi para lhe abreviar a conversa. E ele abreviou. Contou que em poucos anos o mundo ia ser quase todo homossexual e chinês, habitado em larga escala por pessoas com olhos em bico. Com três olhos em bico. Ela esteve tentada a dizer impropérios correspondentes em magnitude ao desplante do homem a quem ela tinha acabado de dar o flanco. Mas lá conseguiu guardar a pergunta debaixo da língua e nem deixou subir à zona cinzenta a questão segundo a qual lançava para o debate o porquê de ter deixado entrar aquele idiota.
Ricardo fechou a porta. Antes da porta tinha dado um beijo na cara. Antes do beijo na cara tinha lavado por fora aquilo que não conseguia lavar por dentro. Antes disso deixou-se rendido à evidência de que, por vezes, as entradas mais triunfais, acontecem pela porta das traseiras.

5.3.10

Falta-me chão

A minha vida tem uma distância de quinze quilómetros. É a latitude média de um dia útil. A contar de uma freguesia com mar em Vila Nova de Gaia, a distância deixa a adivinhar que seja a sul, até esse sítio em que numa avenida citadina há uma bomba de gasolina por baixo de um prédio de habitação. Eu vou para o edfício anterior, à parte onde três pisos de escritórios têm escriturário nenhum. Há uma redacção televisiva por baixo de um consultório de fertilidade e por cima de uma agência de seguros. Exerço o meu ofício entalado entre o que acabei de contar. No rés-do-chão mora uma recém nascida loja de mobiliário.
A longitude dos meus passo não vai, por norma, além de dois quilómetros a contar do mar. Vivo de domingo a domingo num rectângulo de dois por quinze quilómetros. Falta-me chão debaixo dos pés. Não poderei dizer coisas para lá das linhas desta moldura pequena. Um dia saberei contar em detalhe a dureza das montanhas e o perfume das gardénias. Haja chão para calcar.

4.3.10

Chinelos azuis

Para fazer aquela mancha no pilar da ponte, Leonardo Da Vinci teria estado ali uns meros cinco minutos. Teria um pincel grosso para encher o miolo com a brevidade toda, e teria um pincel mais fino para contornar o desenho com o requisito mínimo a que uma obra de um mestre obriga. No caso de ali ter estado a ser o autor da daquela Mona Lisa, Leonardo tinha de ter estado de costas para Vila Nova de Gaia o tempo todo. E teria tido o azar de, apesar de ter estado o tempo todo de frente para o Porto, teria tido o azar de não ter visto a cidade a partir do melhor ângulo. Longe disso. Tinha visto o Porto desde a Arrábida, estendido pelo rio, revelado numas curvas e infelizmente escondido noutras, por sinal as mais repletas de gente habitante e de casas de época mercadoras, por sinal as mais belas das curvas, que nas vontades naturais do Douro se escondiam do olhar de Leonardo. 
Da Vinci teria pintado aquela Mona Lisa no tempo de ler o parágrafo anterior. Aquela mancha preta enferma serviria para dizer: estive aqui muito depressa se um dia eu cá tivesse estado. Obviamente que Da Vinci nunca ali esteve antes da metade do tabuleiro da ponte da Arrábida. Outro dado para lá de qualquer eventual suspeita é o facto de num dos pilares acinzentados da ponte existir uma Mona Lisa pintada a spray sobre um cartão estilizado com a figura da senhora. Obra e graça do anonimato. De forma singular ou plural. Como tiver sido. Sendo certa a presença de uma senhora de sorriso triste, todos os dias, no meu caminho para o emprego, às portas da cidade do Porto.
Valha-me o sorriso feliz de uma mulher na hora do regresso a casa. Hoje já foi dormir porque regresso de madrugada. E ao regressar tenho um folha em cima do balcão da cozinha. A folha tem um sorriso desenhado a traço feminino, por baixo de uma frase onde diz: "para te manter confortável nas tuas noites de escrita". Abro o saco de papel e tiro a surpresa. Venho para este sofá com a ideia de escrever qualquer coisa acerca do Leonardo Da Vinci. Caminho sobre os dedos dos pés, muito confortável nestes chinelos azuis de veludo. Não quero fazer barulho.

2.3.10

O meu primeiro porno

Se isto fosse um post, seria a continuação do enérgico episódio onde se narra a gravidez de Álvaro

Era de madrugada dentro do quarto. Aos olhos de Álvaro, a visão da testeira da cama variava entre uma aproximação calculada do rosto à madeira de mogno e um afastamento que não levava consigo o cheiro do verniz. Estava tudo calculado. Sentado no banco de trás daquela carroça imaginária, Ricardo era o condutor de uma cena onde um homem possuía o outro e os dois assim, eram os veios de aço a ligar a rodas de um comboio antigo.
Por esses dias,ou por essas noites, madrugada dentro, Ricardo tinha vezes em que desconfiava da própria homossexualidade. Esta era uma delas. E logo esta, quando ele afastava obstáculos para o lado, com a total complacência do outro, é certo, mas quando ele afastava obstáculos para o lado com  ajuda das mãos e invadia traseira do outro com a zona mais ocidental do próprio corpo. E é nestes modos, nestes jeitos, nestes quandos, que Ricardo começa a ter a noção da falta que uma mulher lhe faz. Afinal queria um fêmea. Já não se dava por contente nem mesmo estando aos comandos de um ser mais efeminado.
Articulados iam, a caminho do fim de linha mais a direito, no sentido do prazer,.Ricardo perdia por instantes a concentração no que estava a fazer para se perder em divagações sobre a posição em que um se põe de quatro. E não compreendia, de facto, o porquê da colagem dessa imagem, de quatro, à frase pobre onde se fala da posição em que a Alemanha perdeu a guerra. Porque olhando para o Álvaro, quem o visse assim na suposta pele de derrotado em combate, nunca o diria nesse modo. Porque Álvaro, aos olhos de Ricardo, vergado à posição onde o povo foi repetindo que a Alemanha perdeu a guerra, não tinha ar de nada disso, antes pelo contrário. O rosto de Álvaro estava com o ar de quem está a ganhar. E a saborear a vitória.
O comboio foi até ao fim da linha sem descarrilar. O primeiro passageiro saiu sem dizer adeus. Fez da cama um apeadeiro. Vestiu uma camisa, as calças e os sapatos. Pôs um cachecol e o boné. Bateu com a porta. O outro deixou-se ficar para dormir sobre o assunto.

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...