27.4.11

O maior desperdício de talento do mundo

Um homem alto, sem cabelo, morfologicamente perfeito para o emprego que desempenha. É carregador de pianos e é um dos melhores do mundo. Não sabe tocar o instrumento, apesar de já ter ouvido falar nas notas, de saber na ponta língua os nomes de cada uma com cada uma das variações. Não sabe tocar piano e não lhe faz falta. Tem outra missão absolutamente diferente da música, estando na profissão de viver à custa dela, complementando-a e tornando-a possível, porque sem ele, os dedos virtuosos seguramente, dos pianistas, não tinham como conseguir levar o piano do quarto para a sala, da sala para a rua, da rua para o palco. Hoje o pianista teve um dia não, esmurrou a madeira, partiu as cordas, soltou as teclas. O talento do pianista ficou feito numa sinfonia para surdos. O piano é o Real Madrid. O carregador é o Pepe. Foi um erro de uma fracção de segundo, que não merece uma crucificação eterna. As rápidas melhoras. Que volte ainda mais forte.

E o maestro, o que fez o maestro?
O maestro caiu no mesmo instante e quando lhe perguntaram porque também tinha caído, quis dizer em defesa do grupo que o pecado do carregador tinha outra origem que não a do carregador em si. Num minuto, a orquestra perdeu o corpo mais forte e perdeu o cérebro e deixou de ser uma orquestra. A música do descontrolo emocial é uma composição horrível, seja ela ou não assinada pelo melhor de todos os maestros. Assisti hoje ao maior desperdício de talento mundo. Força José.

26.4.11

entretanto

O polegar e o indicador fazem uma tenaz. Os dois, em conjunto e em aperto, seguram um cigarro que arde como se não houvesse bombeiros no mundo. O homem a quem pertencem estes dois dedos caminha em todas as direcções, não caminhando na direcção de algum lado. Anda um metro, regressa, caminha mais dois, regressa, atravessa a rua, chega a estar perto da relva do jardim, regressa, volta a estar neste sítio onde está em modo intermitente. O telefone não toca. O telefone não toca. Lá dentro, no escritório, o telefone não toca. E a barriga da perna não treme, o telefone não vibra, do bolso das calças também não chegam notícias. A tenaz abriu e deixou cair um filtro na calçada portuguesa.
Está à porta da empresa um homem branco de pele castanha. A cabeça está a suar e não se pode dizer que esteja sozinha nesse estado de espírito. As costas estão, porque a camisa não deixa esconder a verdade. Os sovacos estão muito. O peito, na parte onde os homens têm pêlos, está. Está meio corpo do sexo masculino a suar, no limite de um passeio. Na rua a vida segue os destinos que tem de seguir, a vinte, a trinta, a cinquenta quilómetros por hora e, em alguns casos, a pé. A parte inferior do corpo, esconde com um par de calças de fazenda cor de safari, se está a a sofrer da mesma condenação. O movimento das pernas denuncia pé ante pé todos os sinais de um homem inquieto. Outro cigarro perde cinza ao deixar-se tamborilar pelos dedos mindinho, médio e anelar. Tantos nervos na mão esquerda. E a Cíntia que não diz nada.

24.4.11

e a viagem lá foi andando

Quantas pessoas estariam em casa do morto, estava morta por saber desde que a apanharam em casa    hoje à tarde a prima da Cíntia, que só ia com eles para não ficar o fim-de-semana inteiro sem nada para fazer e sem ninguém com quem estar, porque ela não conhecia o coitado que tinha morrido. Como conhecia há mais de vinte anos a amiga dele, por virtude de serem primas, deu-se-lhe para ir, mas só se lhe deu mesmo à última, quando os outros três já estavam a caminho e tiveram de voltar a casa dela, tendo ela antes pegado no telefone e ligado e dito acham que ainda vou a tempo de dizer sim, ou não? E eles tenham resmungado olha esta, que coisa, que falta de coisa, ainda por cima, agora esta, é deixá-la ficar, se não quis vir não vem, mas elas agora quer e além disso é minha prima e vai ficar sozinha, defendeu-se a Cíntia e defendeu a prima, e o Heitor que não ia no bancod e trás porque enjoava já estava a dizer ela vem, mas não me vem tirar o lugar, vá ali para o lado do Alfonso, e olhou pelo retrovisor esticando o pescoço até conseguir ver o lugar vazio nas costas da condutora, a prima, a dona do volante e senhora da conversa. Quantos pessoas estariam em casa do morto, enchia a cabeça com isto cá fora, pois lá dentro nenhum dos outros três podia voltar ouvir a mesma pergunta que da última vez que a vez, até o Alfonso, o mais calado dos dois homens, abriu a sua parte na conversa para dizer sei ou o caralho e depois daquilo não houve mais moral para interrogações. Retirou a mangueira do carro, pagou os dez euros da conta com os dez euros enrodilhados da mão direita, arranjou a franja antes de a porta de vidro se abrir pela aproximação do seu corpo ao sensor e no seu andar, porventura ninguém o diria, caminhava uma dor patológica, uma incerteza absoluta, os miolos devorados por não saber ao certo, nem de longe, nem de perto, do tamanho do funeral. Reentrou no carro, isto dá cada vez menos litros, queixou-se da gasolina, assentindo as outras três cabeças. Seguiram viagem.

23.4.11

O começo do terceiro capítulo

Assomaram duas cabeças na chegada à bomba de gasolina quando já era de noite. Eram duas mulheres nos lugares da frente de um carro branco. O carro onde vinham, de onde vinham, e para onde iriam, e daí para onde continuariam a ir se deus quisesse e motor deixasse, esse carro era um ferro velho com nome de musa. Mas disso elas não deviam saber, disso da musa. Para elas era um Clio, era um Renô que se escrevia Renault, mas que não se lia Renault, lia-se Renô. Um carro francês e muito velho, que andava a ser comido pelo tempo há mais de vinte anos. Branco por fora, perfume e cigarros por dentro, era o que dava para ver deste lugar em frente à máquina de café.
Uma dragona sobre o rosto da mulher que vinha a conduzir retirava o resto da identidade à senhora. Adivinhava-se no que ficava à mostra da cara a idade, trinta e oito, quarenta e era só isso. A dragona marcava aquela pessoa como quando está nos ombros de um general. Define e ponto. Mas disso elas não deviam saber, disso do cabelo desta loira ter sido cortado nos mesmos moldes dos alfaiates das casas da fardas no século dezoito. Disso elas não deviam saber, disso das franjas com fios de seda e de ouro, iguais na cabeça da condutora , a pender sobre a testa, como nos braços dos militares. 
A outra senhora saiu quando o carro parou pela porta do lado direito. Evitou sujar a mão na mangueira com a nota de dez euros enrolada que trazia na mão. Marcou dez euros na tecla para abastecer, e ao abastecer olhou para vários lados, entre eles para mim. Aquela era uma dragona preta. Um franja retinta por cima de dois olhos crispados, de uma testa franzida, de um cú para fora e de uma barriga para dentro. Sim meu general, vou olhar noutro sentido. 
Esta noite, Clio não é nome de musa. Disso, elas nada sabem, nem elas nem os dois rapazes que as duas trazem sentados no banco de trás, e eu infelizmente não posso dizer o mesmo sobre o facto de nada saber. 

15.4.11

A senhora, pela terceira vez

Disse lá vai ele. Hoje leva o casaco de ontem, o chapéu de ontem, por cima do cabelo por lavar de ontem, caminha com o mesmo caminhar de ontem, nos mesmos sapatos e  vou jurar as mesmas meias pretas. De ontem. Os ricos tanto andam sempre de meias pretas que podiam usar sempre as mesmas, é até provável que as usem, os mais pobres de espírito, como este, o que vou seguir para ver onde vai, vou só pegar num xaile, tenho tempo de olhar ao espelho a nuca, de caçar o cabelo na rede, de tirar os dentes da boca, com tempo, porque ao ter apanhar o eléctrico de ontem, ele vai ficar sentado mais dez minutos da paragem, vai olhar para o chão, vai olhar o céu, sorrir aos pombos e eu, disfarçadamente como ontem, hoje não hei-de ficar à janela, hoje vou de eléctrico como tu, sentada ou em pé conforme tu estejas, descerei com os pés nos mesmos degraus, serei da cor da tua sombra, num tom mais transparente. Passo as gengivas pela água com elixir presa no lavatório, prendo os botões do casaco até cima, cuspo na sanita e ponho os dentes. Amarro um lenço na cabeça. Deixo as pontas caídas para trás e sigo em frente. Estás onde estavas e estás sentado. Não me pareces deste mundo. Disse, mas não ouviste. Disse para dentro.

4.4.11

A última parábola

Jesus, que não era cristo, mandou para a baliza um jogador que não era guarda-redes e este deixou entrar um bola que não era golo, chutada de uma forma que não era um remate. De um lado e do outro disseram à vez que o penalty não era penalty, e de um lado e do outro ainda disseram que o cartão vermelho também não era cartão vermelho.
A seguir a isto tudo, o jogo de futebol acabou e o campeão nacional já não era um, era outro. No estádio da Luz, já não era luz era escuro. Só faltava aparecer um treinador iluminado a dizer que não era electricista.

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...