26.7.11

Um dia nas corridas

O pau que um dia já tinha sido um ramo de uma ávore de fruto tinha uma ponta da forma de um coto e essa forma estava cravada na terra e uma ponta bifurcada: no meio do "v", um arame, esticado, impedia a roupa de bater no chão, evitava nova fadiga dos braços da mãe ou da avó.
O arame, na totalidade do próprio comprimento, mordido pelas molas de plástico, que não estavam ali para o comer, estavam ali a segurar calças, camisas, mangas curtas, meias, cuecas, cuecas, cuecas, meias, meias e meias, um casaco. Um ou outro par de coadores de café.
Em 1986 estava a começar a nossa volta ao mundo. A televisão era a janela que nos abria as portas. Quando estávamos prontos para voltar à rua, não o sabíamos mas éramos copistas de mãos vazias à disposição das tardes, talhados para replicar um jogo de futebol do mundial no México, onde deus desceu à terra pela última vez, as saudades das pedaladas do ciclismo do Sporting, um campeonato inteiro de Formula 1. Daqui em diante vamos prender estar história com as tais molas de plástico. Vamos morder os calcanhares à memória.
Uma mola amarela. A partes da mola onde se aperta para ela abrir a boca, nessa parte, em vez de apertar, afasta-se os dois lados com os dedos polegar e indicador de cada mão. Com cuidado para evitar o richote da mola. Com cuidado um dos lados em plástico fica liberto e depois liberta-se o outro da parte metálica. Como numa receita de cozinha, é preciso fazer uma coisa a seguir à outra. Agora é preciso voltar cada uma das partes planas para o chão. E já está! Dois carros de Formula 1 amarelos, a equipa Williams, o manicómio sobre rodas de Mansell e Piquet. As molas brancas, com um risco de marcador vermelho, a McLaren, o maço de tabaco de Prost e Roseberg. As molas verdes, a multicolor Benetton, roupinha arranjadinha do Berger e do Fabi. As molas brancas, com um risco azul, a Brabham, do recordista de corridas Patrese e a urna de De Angelis. As molas azuis, azuis de França, Ligier, armada gaulesa dos três mosqueteiros Laffite, Arnoux e Alliot. E um par de molas de madeira, pintado com um marcador preto, a Lotus de Dumfries e de Senna. E depois de tudo isto as mãos abriam estradas na areia do parque infantil, as mãos faziam as pistas dos desenhos dos circuitos da tv, as mãos empurravam os carros. No fim o champanhe sabia a gasosa e não havia meninas para dar beijinhos.

21.7.11

Respira fundo

Em passo de corrida às onze horas da noite mais vinte minutos arranca uma história seguramente candidata ao prémio móvel da economia da gramática se houvesse porque os dois únicos acentos são esta virgula e este ponto por extenso e a partir daqui vai ser até ao fim como foi até aqui ao ritmo médio de cinco minutos e trinta e quatro segundos por quilómetro vai ser a esta velocidade durante os próximos oito quilómetros a contar a partir de quando se começou a escrever em passo de corrida às onze horas da noite mais vinte minutos do dia vinte de julho um dia que vai acabar antes do fim desta corrida feita em média a uma velocidade pouco superior aos dez quilómetros por hora um andamento agradável sem forçar a mente e sem esforçar o corpo duas partes que têm de estar correr sempre para o mesmo lado caso contrário o atletismo deixa de ser uma actividade saudável e assume o significado da palavra tortura palavra que só vem aqui a este caso com o propósito único de explicar como é correr com o corpo e não conseguir correr com o cérebro e o contrário também e ainda bem que está tudo convenientemente explicado o que a dez quilómetros por hora só se consegue fazer se como foi anteriormente explicado o corpo e a mente estiveram a correr cada um com o seu pé e em simultâneo e saliente-se o contributo da temperatura do ar perto da meia-noite um aliado nestas coisas do caminhar por desporto relativamente mais depressa é que por um lado foda-se foda-se está para a corrida como um sinal de pontuação está para uma frase foda-se é uma pausa em andamento é a capacidade de respirar fundo sem ter de se recorrer à necessidade de parar e recorrer não é voltar a correr recorrer é querer outra vez o mesmo objectivo falhado imediatamente antes por isso se calhar recorrer é fugir para a frente mas correr apesar de ser andar para a frente com alguma pressa não é uma fuga é exactamente o contrário e antes do primeiro foda-se estava a decorrer a entrega do prémio de mérito e justiça à noite quando colocada ao serviço do corpo e neste particular os pulmões estão a correr em casa quando correm no escuro e no escuro é quando todos os músculos dos corpo melhor compreendem a dupla condição forçar relaxar forçar relaxar e só terminam o trabalho quando todos os habitantes do corpo do coração aos pêlos do nariz sem ordem de importância aprovam por unanimidade a paragem uns dos outros relativamente à tarefa que estavam a desempenhar com suor de norte a sul da pele e um esqueleto feliz da vida ao perceber o significado das manobras da língua ao dizer missão cumprida

18.7.11

Depois da liberdade

Esta liberdade é uma palavra muito forte que vem da América do norte, foi editada no ano passado nesse mesmo território, foi traduzida para português pela Maria João Freire de Andrade, foi revista a tradução pelo José João Leiria, foi capa de uma revista americana cujo nome em português é tempo. A liberdade é um livro com seiscentas e oitentas quatro páginas, do americano Jonathan Franzen, é um livro do tamanho do felisteu Golias que me foi oferecido pelo gigante francês da cultura, Fnac, Fédération Nationale d'Achats des Cadres,federação nacional de compradores de quadros, a tradução é minha. Este liberdade foi uma oferta em retribuição da compra desta tábua de vidro onde também, entre muitas outras liberdades, se pode escrever.
Tenho esta liberdade há cerca de duas semanas e vou ter esta liberdade durante as próximas trezentas e setenta e quatro páginas, que é número a seguir ao qual vem o fim. Vou ter saudades dos Berglunds, mãe e filho principalmente, e do Katz. Vou ter saudades do jeito que este Golias das prateleiras dá quando posto em função de almofada, sobre a toalha, na praia, de frente para o sol. Os livros magros não são muito desta estação.
Agradeço, portanto, esta liberdade ao retalho francês, ao escritor americano, à sociedade americana também, e à revista chamada tempo. A seguir vou pegar num português chamado Valter, que me autografou o livro onde me pede para não o deixar cair no esquecimentos, ao livro, e através do qual espero ficar a saber mais qualquer coisinha da máquina de fazer espanhóis.

(achei vinte euros no chão de uma rua enquanto corria feliz da vida com um par de sapatilhas novas. Desses vinte euros, gastei dezasseis no livro Tia Júlia e o Escrevedor, do peruano Mario Vargas Llosa, desse continente abaixo da América do norte, a sul dessa liberdade já Em cima descrita, essa mancha de terra e máquina de fazer escritores de língua espanhola)

(feitas a contas: três livros por onze euros, preço do português, com cinquenta por cento de desconto na feira do livro)

Os quadros brancos do mundo inteiro

Em comum aos dias 5, 7 e 15 havia uma linha onde o texto tinha começado e uma linha de onde o texto não tinha saído. O mês de Julho estava a construir um caderno mudo. Em cada um dos três dias, o teclado deu passos inseguros, respostas vagas para o caminho a tomar, o teclado recuou com os dedos e apagou todos os começos de frase e deixou a página em branco, como ela estava no início, como ela se apresentava no fim,  um prato limpo, sem carne nem peixe nem gordura nem massa nem folhas de alface nem cebola, um grão de arroz que fosse, em matéria de prova, a evidência de ter existido alimento (as ideias) mas de não ter havido fome (as palavras).

O dia 5. O dia 5 tinha um título e pouco de mais de um título. Plácido domingo, entitulava-se o dia 5. Era para ter sido uma breve história a contar as nove horas da manhã de um domingo deserto no Porto, deserto esverdeado por uma miragem de um homem a correr sozinho na descida da Boavista para o parque da cidade. Depois, uma hora mais tarde, o mesmo homem subia a mesma avenida, o mesmo deserto e passava dessa vez a caminhar. Tinha suor no rosto no peito e nas costas, uma camisola azul de alças, uns calções azuis, o jornal A Bola na mão direita, dobrado, e ele a ler a última página enquanto caminhava e trazia na mão esquerda um saco de papel castanho que talvez fosse o saco do pão. A seguir ao almoço, quando os carros e as pessoas tinham acabado com o deserto do Porto, o mesmo homem voltou a descer a avenida, calçava umas sapatilhas diferentes,  o braço onde tinha o jornal abraçava agora o ombro direito de uma senhora vestida com um fato de treino branco. Já não vi o Jorge Plácido desde o tempo em que ele subia e descia os campos de futebol naquela caminho tantas vezes deserto entre as balizas. Daí o Plácido do domingo, nada a ver com o tenor, mas sim com a paz de um casal que deve estar a escolher uma mesa recatada e a pedir dois cafés.

O dia 7. O dia 7 fugiu. Confesso que não me lembro. Continha um episódio urbano, atropelado por uma fragilidade criativa gigante. Deixou de existir.

O dia 15. O dia 15 acordou a fazer perguntas sobre os quadros brancos do mundo inteiro. Focando até ficar nítido: entenda-se por quadros brancos as histórias que um dia, por que motivo, não tiveram a vez de serem contadas. Pelo contador avaro, pelo contador seco, desligado, espremido, adiado, dormente, branco.
O museu da páginas vazias fechou por tempo indeterminado

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...