28.3.11

Homens em calções

Antes de o jogo de futebol ter chegado ao fim, o jogador com número onze nas costas, da equipa com camisola verde, calções pretos e meias brancas, pediu uma garrafa de água ao massagista, o massagista procurou ao lado do saco dos remédios no cesto das bebidas a mais cheia de todas, atirou-a para a frente, para as mãos do avançado que já vinha a correr e que estava a chegar já perto da linha lateral. Obrigado. Bebeu e pediu ao treinador para sair. Faltavam vinte minutos para o fim do jogo.

Não queria uma camisola suada colada nas costas, colada no peito, fria quando há fases menos movimentadas em campo. Não queria isso. Queria vestir roupa diferente de todas as pessoas que estavam por perto. Não tinha vontade de partilhar uma bola nem de andar para trás e para frente em grupo. Queria chegar, ficar sentado, fechar a porta.

Queres o quê? Quero sair. Estás cansado? Não. Estou farto.
Houve no ar, durante um minuto, o lado perturbador do silêncio, mas depois desse minuto, havia no ar uma placa electrónica com o número 11 assinalado pela junção de pontos vermelhos, ao lado do número 17 com pontos todos os verdes. Eram as cores na placa, o silêncio no ar e o barulho de pés rápidos e breves na relva a entrar em campo e o peso de pés lentos ao abandonar o jogo, a equipa, o futebol, a vida em grupo.

Em vez do balneário, preferia estar no quarto. Ou na sala. Onde tivesse de ser, desde de que fosse em sua casa e desde de que não fosse ali. Não queira o banho daquela água e já não sabia se estava a ouvir aquele som que vinha do campo e se aquele som que o golo tem quando sai da bocas de um grupo de pessoas era real ou se já eram palavras que inventava em cima de um papel, escondido das bancadas.

Tirou a camisola para a guardar num saco de plástico. Os calções e as meias ficaram no chão, em cima das chuteiras. Bebeu mais água, bebeu da torneira, rodou para fechar. Levantou a cara e olhou para o espelho. Estava embaciado. Antes assim. O que estava a ir embora passava então por ser o vulto de um homem anónimo.

Em casa trocou os pés pelas mãos. Escreveu as voltas que a vida dá para dizer as voltas que a vida deu. Disse o nome e disse a idade. Disse o sexo. Disse que tinha abandonado o futebol de uma vez por todas porque gostava mais de livros do que de balizas. Estava mais inclinado para as frases; as jogadas já não. Era um homem diferente, escreveu, contando onde estava quando decidiu trocar uma coisa pela outra, escrevendo que o jogo ainda não tinha chegado ao fim quando o jogador com o número 11 nas costas, da equipa com camisola verde, os calções pretos e as meias brancas, pediu água ao massagista e disse ao treinador que ia embora. Estava outra vez em campo. Riscou com mais força no papel com a caneta na mão direita, dominou a bola com o pé esquerdo, fintou, fintou dois e fintou três. O quarto desviou-o com o corpo. Chutou com força e foi golo. Tinha uma escrita previsível e um futebol virtual.

26.3.11

Emprestar amigos aos mortos

Não quero escrever um texto celestial. Não quero socorrer-me dos anjos, nem quero ver por perto nuvens brancas almofadadas. E não quero poder deitar-me sobre um colchão de penas. Quero acordar para a realidade, quero saber que vai doer e quero, sem ter medo, cair desamparado no chão duro dos dias.

24.3.11

O supermercado daltónico

Gulpilhares - Na cadeia de supermercados onde acabo de entrar, os cestos de plástico com rodinhas são verdes, mas estes não são, são cinzentos, e a troca inesperada de cor faz-me duvidar, quando me baixo para pegar na pega de um, do lugar onde estou, e eu, por um instante, interiorizo que me enganei e exteriorizo um gesto ao pousar o cesto e volto o olhar para a entrada e volto a ter a certeza de estar no lugar certo, porque as letras com o nome do lugar assim o dizem. O lugar está certo, eu estou certo. Errada está a cor cinzenta do cesto com rodas pretas.
Na prateleira onde estão os livros não há um livro capaz de me fazer esticar o braço, de o escolher, de o abrir, o folhear e o ler nos primeiros parágrafos. Ponto final na prateleira dos livros. A sair de lá para conduzir o cestinho daltónico até ao corredor do pão, levo de frente com uma funcionária, ela igualmente daltónica, numa farda azul, estranha à uniformidade verde de todos os outros supermercados com o mesmo nome e a mesma música e o mesmo anúncio e o mesmo imposto de valor acrescentado.

23.3.11

извините, пожалуйста

(ainda) Moscovo- Em não tendo como, nem por onde, entender,  ver é a solução, mas ver em observando com método e atenção. Acabámos de sair da estação de metro. Acabámos refere-se nós, nós refere-se aos quatro portugueses que somos à procura de uma rua. Rua da qual sabemos  detalhes essenciais, mas da qual não sabemos o todo. Sabemos a parte. E saber a parte se não revelou de todo insuficiente. Saber a parte já nos trouxe desde o hotel à estação de Teatralnaya, e da estação de Teatralnaya, logo a seguir ao teatro Bolshoi e após muitas perguntas debaixo do chão, perguntas feitas com um dedo em cima de um mapa-mini do metro, saber a parte acabou por nos fazer chegar à estação Biblioteka Lenina. Esta:

Queremos subir as escadas quando soubermos onde elas estão, as escadas correctas. Oito olhos no mapa, oito olhos nas placas, oito olhos no mapa, oito olhos nas placas, a comparar, a adivinhar e finalmente a desvendar o cirílico. Com maior ou menor engano chegámos ao ponto de encarar a luz do dia que existe para lá das velhas portas de madeira e que brilha nos vidros baços.
Na rua. Voltámos a estar na rua. Somos quatro e temos um mapa, mas somos portugueses e eles são russos. Somos portugueses e queremos ajuda em inglês, mas eles não querem. No meio deste desencontro já não há sequer quem páre para responder ao isco excuse me, please. Old Arbat está perto. O mapa diz que sim só não sabemos onde. Estão perto de nós os capecetes dos pilotos dos caças soviéticos. Estão perto de nós os bivaques, as fardas, o exército e a marinha. O comunismo há-de estar ali ao dobrar das esquina, só não sabemos onde. E é quando nos vem à memória uma frase batida. Uma frase que vem a correr de 2005 para salvar a situação. Uma frase utilizada pelo José Milhazes quando foi preciso chegar de carro a Novogorsk. A frase é a que está no título: извините, пожалуйста. Pronuncia-se mas ou menos assim: izbinit pajouste. E quer dizer: desculpe, por favor. Um senhor russo parou, olhou para o mapa e a falar em russo explicou como chegar à Rua Old Arbat. Eu disse sempre que sim com a cabeça e talvez tenha deixado sair um ou outro  да (diz-se dá, quer dizer sim), comunicando com o salvador da nóssia pátria de quatro portugueses sem tirar os olhos dos braços e das mãos do homem. Foi só virar à direita e voltar a virar à direita e lá estava a rua onde vendem as memórias do comunismo.

21.3.11

Movimentos circulares repetitivos

Andar à volta, passar ao lado, voltar ao princípio, chegar ao fim. Começar de novo. Subir, subir, subir. Cair. Dar um tombo, trambolhar. Correr para a frente, andar para trás, parar, arredondar. Andar à volta, passar ao lado, voltar ao princípio, chegar ao fim. Começar de novo. Subir, subir, subir. Cair. Dar um tombo, trambolhar. Correr para a frente, andar para trás, parar, arredondar. Andar à volta, passar ao lado, voltar ao princípio, chegar ao fim. Começar de novo. Subir, subir, subir. Cair. Dar um tombo, trambolhar. Correr para a frente, andar para trás, parar, arredondar. Andar à volta, passar ao lado, voltar ao princípio, chegar ao fim. Começar de novo. Subir, subir, subir. Cair. Dar um tombo, trambolhar. Correr para a frente, andar para trás, parar, arredondar. Andar à volta, passar ao lado, voltar ao princípio, chegar ao fim. Começar de novo. Subir, subir, subir. Cair. Dar um tombo, trambolhar. Correr para a frente, andar para trás, parar, arredondar. Andar à volta, passar ao lado, voltar ao princípio, chegar ao fim. Começar de novo. Subir, subir, subir. Cair. Dar um tombo, trambolhar. Correr para a frente, andar para trás, parar, arredondar. Andar à volta, passar ao lado, voltar ao princípio, chegar ao fim. Começar de novo. Subir, subir, subir. Cair. Dar um tombo, trambolhar. Correr para a frente, andar para trás, parar, arredondar. Andar à volta, passar ao lado, voltar ao princípio, chegar ao fim. Começar de novo. Subir, subir, subir. Cair. Dar um tombo, trambolhar. Correr para a frente, andar para trás, parar, arredondar.

20.3.11

A senhora, outra vez

Disse no dia em que vi pela primeira vez uma pessoa a morrer, os olhos dele estavam espantados como estavam espantados os olhos deste rapaz naquela manhã. Nunca mais me esqueço que eram dez horas porque vi o homem do correio quando eu estava a subir os degraus do eléctrico. Tive medo de poder estar a chegar uma carta registada e de ter de voltar a sair de casa outra vez no dia seguinte para a levantar no posto. Foi quando aquilo aconteceu sem aviso de recepção.

A senhora

Disse sou eu a vizinha e acudiu ao cobrador dos bombeiros voluntários, o homem de chapéu à polícia, de casaco à comandante de navio, de sapatos à patife, um homem à banda desenhada da cabeça aos pés, perdido no cimento do chão, dentro de uma roda de passeantes, transeuntes e moradores. Sou eu a vizinha de quem todos esses em redor lhe estão falar baixinho para eu não ouvir, mas como sou eu, a que ouve tudo, ora diga lá o que quer de uma vez que eu ouço este prédio por fora e por dentro

17.3.11

As bonecas russas

Moscovo - Ken, figura de plástico do imaginário infantil norte-americano, não existe na Rússia. Aqui as bonecas não ligam a rapazes de pólo anil, calças brancas drobradas nas beiras, sapatos de vela azuis com atacadores brancos em pele e sola da mesma cor e um pull-over rosa caído sobre os ombros, com as mangas apertadas no peito. Aqui as bonecas não ligam a esses rapazes de corte de cabelo engomado, a esses modelos tão limpos tão limpos que estão à beira de deixarem de ser rapazes para passarem a ser naturalmente raparigas.
Estas Barbies de pele e de carne e de osso e de cabelos verdadeiros e de pestanas verdadeiras, têm pedras preciosas no lugar dos olhos, mas não têm sucedâneos do amaricado, perdão, americano Ken. Estas Barbies não gostam muito de homens. Esta Barbies é mesmo possível que não gostem nada de homens. Elas gostam de cilindros, muitos, de bancos aquecidos em pele, de volantes grossos e carroçarias grandes. Gostam de pneus altos e largos. Gostam de vidros pretos e de modelos traduzidos em milhares de euros. Só no fim disto tudo é que guardam um bocado do acto de gostar e então gostam perdidamente do tipo mais baixo, mais velho, mais gordo que vai ao lado a conduzir a relação de interesses. E mais rico.
"As Bonecas Russas" é o título de um filme francês que faz a continuação, cinco anos mais tarde, do filme "A Residência Espanhola". È sobre a tentattiva de um jornalista reconciliar o trabalho, a escrita e o amor. Da minha parte posso dizer que não vinha a Moscovo há cinco anos.

16.3.11

Os caminhantes

Moscovo - Em contraponto vertical aos profissionais sentados, encontram-se de igual forma em número assinalável, homens e mulheres, amadores em pé, com um livro na mão. Amadores no sentido de amantes, pessoas que gostam sem saber como, sem perguntar porquê. Uma das actividades observável num russo enquanto caminha é a capacidade de continuar a andar com um livro aberto por uma mão, colocado por essa mão em frente aos dois olhos, continuando a caminhar no mesmo passo de quando os olhos estão de horizonte desimpedido. Com os livros em frente seguem o caminho e ao seguirem estão a fazer ensaios sobre a cegueira, embora aquilo não seja um ensaio, seja a realidade a acontecer, seja o rapaz de casaco militar e pernas finas a ser levado pelos outros sentidos para escadas rolantes do metro como se aquele seu corpo fosse um tronco perdido à mercê da natureza nas cataratas de Niagara. E aqui vem ele, com o cabelo riscado ao lado, aqui vem ele a descer nesta escadaria a pique, enquanto eu subo e os dois neste cruzamentos somos duas diagonais que nunca se vão tocar, mas que tocam. Porque ele ao ir à sua vida está a ir e ao mesmo tempo a ficar na minha, está a entrar nestas linhas, a ficar guardado para sempre na minha memória. Agora é a vez de uma rapariga loira escutar o sinal verde para peões e passar por nós que estávamos parados a encarar a mudança de cor do sinal e a ganhar vantagem porque só agora estamos a arrancar. Tem uma gabardine cinzenta amarrada por um cinto cinzento e deixa-se seguir no trote de um par de botas cinzentas. Leva um livro em frente ao rosto. Desconheço o conteúdo, desconheço o autor, desconheço até a língua e desconheço o título. Não sabendo uma vírgula dessa história, sei o suficiente para dizer que em todas aquelas páginas há a magia que lhe permite caminhar de olhos fechados.

A língua portuguesa sabe muito mal...

A ter de dizer o que aconteceu vou-me sentar, dizer, ter dito.


O dia 31 de janeiro por algum motivo estava a teimar em não sair do calendário. A tarde, nos meus olhos tinha ficado presa num monitor de um computador, e em volta, se alguma coisa existia, se alguém havia, não vi, não sei de nada disso.
Um competição anunciada no mês de novembro escrevia a pedir candidatos interessados na publicação de um pequeno conto, compreendido em escassas dezenas de páginas. Era o desafio ideal para contar a história do guarda-chuva do Papa Bento XVI. Em vez de trazer a história ao concurso, deixei-a ficar fechada com o guarda-chuva, pendurada para melhor ocasião, como ele também está, num canto de azulejos brancos da lavandaria em minha casa.
Esqueci, esqueci depressa o guarda-chuva do Papa, tão depressa como me tinha lembrado dele. Não escrevi com o guarda-chuva, antes me abriguei do inverno com ele. Foi nesses dias que me caiu em cima uma chuva de palavras e eu me atirei com elas ao cofre em que se transforma um documento em formato digital. As horas correram maratonas, as palavras fizeram cem metros, respiraram fundo e voltaram a fazer cem metros barreiras. Aos poucos, as frases começaram a produzir campeões do mundo. Eu tinha três meses pela frente e já estava muito perto do número mínimo de páginas exigido pela organização do concurso de talentos da Fnac. Deixei acabar novembro e deixei começar dezembro, deixei acabar um ano e deixei começar o outro. Decidi por fim deixar o documento fora do concurso.

O dia 31 de janeiro por algum motivo estava a teimar em não sair do calendário. Só que o teimoso não era o calendário, era eu. O concurso terminava à meia-noite. De mãos vazias voltei as costas ao ecrã do computador. De mãos vazias meti as mãos do bolsos e de mãos vazias fui ao bolso do casaco à procura de trinta cêntimos para tirar um café. Que se foda! De mãos vazias regressei à mesma secretária de onde tinha saído à bocadinho de mãos vazias e de mãos vazias enchi o peito de ar e mergulhei de cabeça em todas as páginas da internet onde tinha escrito qualquer coisa ao longo do anos.
Quando vim à tona trazia na mão um punhado de textos. Respirei fundo. Colei, apaguei, voltei a colar. Diminuí, acrescentei. Fiz um jornal inteiro a uma hora da hora do fecho. Fiz tudo em cima do joelho (acto bravo para quem tinha acabado de recuperar de uma rótula partida). Aquilo era o resultado de um abrir e fechar de olhos. Era a história cruzada de segundos das vidas de homens e de mulheres. Mas aquilo não era um conto. Escrevi em francês isto não é um conto, citando Diderot, logo a seguir ao título. O título era "O movimento rápido dos olhos", uma alusão às perturbações do sono. O dedo indicador direito levou o rato até sítio onde estava escrito enviar. Eu levei o corpo até onde estava escrito dormir.

Esta noite foram anunciados os 10 melhores contos do concurso de novos talentos da Fnac. Perdi. Obrigado aos quatro elementos do júri por me terem feito ficar do lado de fora desta espécie de festival da canção, mas em escrito. Eu que afinal já me tinha auto-excluído, ao não apresentar um conto. Esse nasceu quando tinha de nascer, mas não era para aquilo. Está a aprender com o tempo e um dia, quando for grande, quer ser um livro.
Quanto ao concorrente "O movimento rápido do olhos"... não entra na cabeça dele a ideia de haver 10 melhores. Nestas alturas, a língua portuguesa sabe muito mal...

Perdi. Não farei luto. Não deixarei de lutar.

15.3.11

Takci

Estamos em Moscovo há vinte minutos e já estamos pelos cabelos. Não são cabelos, são fardas,  os cabelos, de cabeça em cabeça, iguais, nos homens, penteados para a frente. Uma linha de montagem não os faria parecer melhor repetidos. Aos alfandegários, aos polícias, ao homem, ao rapaz, a todos, sem excepção. O aeroporto repete-se um metro a seguir outro, passo a passo, se estamos a contar o lado masculino de tudo aquilo que nos vai aparecendo à frente do carrinho das malas. Estes três  podiam ser aqueles seis polícias lá do fundo - e vão ser quando lá chegarmos - matrioshkas com pistola à cinta, cinto atravessado na diagonal sobre a camisa, de cabeça funda no chapéu militar de inverno, com a pala de cima em plena erecção matinal e pala de baixo murcha, e eles por baixo das palas, que nem burros, eles, ali à procura da melhor forma de tirarem o dinheiro das carteiras de quem chega sem dizer mãos ao ar isto um assalto nem chegarem ao ponto da subtileza visual e táctil dos carteiristas. Ficam neste intervalo. Quedamo-nos em sossego a ver o que tem de vir com o resto do filme. Escolhemos ficar sentados.

Sentado é uma profissão muito concorrida em Moscovo. Sentado é trabalho para mulher e é trabalho para homem. É trabalho para alto, magro, baixo, gordo, velho, novo. Sentado é um lugar à espera de vaga e é os lugares todos ocupados. Sentado é a velhota que se levanta da guarita de vidro no metro e nos abre a cancela aos oito para que possamos passar sem pagar. Sentado é também a gorda sem fobias, na casota de vidro do tamanho dela, casota que a enlata numa forma rectangular transparente. A gorda que nos vê os pés ao fundo dos degraus, a sair da descida rolante.
Sentado é poiso estático, mas sentado também é sobre rodas. É este carro nos dois lugares da frente, é estes bancos com dois milícias pousados, sonolentos, em frente ao ministério. Estes dois, numa situação de emergência, ainda vão ter de estudar a melhor forma de emergir dos outros trinta e sete carros entre o carro deles e a estrada, sem caminho formado pelos restantes estacionados. Sentado é posto da velhota, dona de uma das cinco sanitas portáteis, forradas a plástico verde nas quatro paredes e a preto no tecto. Este posto sentado é digno de uma porta aberta pela conjugação de uma corda amarrada desde o trinco da porta até ao poste mais próximo. Escancarada, a velha sentou-se na figura de colectora de moedas a troco de uma chave com acesso garantido a um buraco onde se pode enfiar à pressa o que se quer deitar fora.
Neste ofício do estar sentado, o lugar no topo da hierarquia é o lugar à frente dos volantes do carros mais apetrechados em termos de cilindrada. A gasolina ao preço de sessenta cêntimos por litro aquece quase sem custos o interior do carro onde o profissional dos profissionais da arte de estar sentado espera, sentado, pelo dono do carro, e por inclusão de partes, dono indivíduo sentado e dormitante ao lado do lugar do morto.

E agora vem o resto do filme no aeroporto: a polícia deixou-nos sair com o material de trabalho e nem sequer chegou a insinuar qualquer manobra de diversão tendo em vista o conteúdo dos nossos portugueses bolsos. Foi com certeza por termos ficado respeitosamente sentadinhos. Tão bem sentados que nos tomaram por russos. Baixaram as guardas da alfândega, entramos em Moscovo. À saída, uma confusão de homens em pé agarrava cartolinas das mais diversas cores, mas com uma única palavra: takci. São a vergonha da profissão sentada. Em bicos de pé, à procura de trabalho.

O comboio de Liège

… acontece que no ano 2000 o mundo já era todo moderno. Daí vem o facto de eu ter estranhado a cor antiga das carruagens castanhas. O interior de cada uma era gasto, mas limpo, sem excepção. Resumindo: o ar velho - velho mas ainda não tão velho que se pudesse chamar antigo - do comboio responsável por unir de forma quase directa a cidade de Spa à capital Bruxelas. Admirei a Bélgica por ser um país mais rico do que Portugal e por não desperdiçar dinheiro em vaidades para as quais o dinheiro é caro.

Estou a fazer parte do caminho de regresso a Portugal. O táxi tinha chegado sem falta às 5 da manhãm ao hotel Dorint, onde fui jornalisticamente muito bem baptizado (Manuela Brandão, Eugénio Queiros, Jorge Monteiro, António Casanova; Paulo Duarte, Rui Gomes, Paulo Silva, etc, etc etc,). Fomos de Spa pelas luzes do carro e dos postes até Liège. No comboio era eu, a minha mala, o meu sono e belgas a caminho da ruralidade dos empregos. Tanto era o sono que já não me lembro se o comboio chegou perto do aeroporto ou se cheguei a seguir caminho noutro táxi. É indiferente.
À hora a que adormeço no avião para o Porto, nesse princípio de verão do ano 2000, Louis Van Gall é despedido do Barcelona e chega a seleccionador da Holanda. José Mourinho está para fazer a estreia como treinador principal no Benfica. Nesse mesmo defeso, um miúdo de 20 anos, Diego Milito, está começar uma época que vai terminar com o título de campeão argentino no Racing Avellaneda. O nome Robben só é conhecido nas camadas jovens do Groningen. Júlio César é um goleiro “minino” no Flamengo. Sneijder e Cambiasso ainda têm cabelo e jogam nas escolinhas do Ajax, um, e no Independiente, outro. A lista começa a parecer um comboio que não vai a lado nenhum. Já cá voltamos.

Meia dúzia de dias antes, uma sucessão de acasos leva-me ao sítio onde vou acabar esta história. O FC do Porto quer contratar Dimitri Alenitchev. Sei que é russo e que joga no Perugia de Itália. O Perugia está em Liège para jogar uma eliminatória da taça Intertoto. Apanho boleia dos camaradas de reportagem do jornal A Bola e consigo o exclusivo radiofónico da primeira entrevista do médio ofensivo russo para Portugal.
O dia seguinte é o dia do jogo entre o Standard de Liège e o Perugia. Conseguimos as acreditações necessárias e vamos para o estádio fazer a cobertura do encontro com o futuro reforço portista. Logo à entrada julgo que o Eugénio me chama à atenção para o Luciano D´Onofrio. Do nada reparo num personagem que à partida não devia fazer parte daquela história. Estavamos à procura de algum emissário do FC Porto e nada. Quem está em Liège para assistir ao jogo é o presidente da SAD do Sporting, o Luís Duque. Lá perguntámos se ele queria também o Dimitri. Ele sorriu e disse que não, que não. Estava à procura de um defesa central. Quem? “O Daniel”. Quem é o Daniel? “O Van Buyten”. Ouvi este nome pela primeira vez e depois disso confesso que acompanhei sempre à distância a carreira de um central que nunca chegou a vestir a camisola do Sporting.
Hoje voltei a reencontrar o Daniel, por via da transmissão televisiva. Tinha uma camisola vermelha com o número 5. Levou pela frente com o rapaz que um dia foi um miúdo do Racing de Avellaneda. E descarrilou como nunca descarrilaria um velho comboio belga.

PS: no resto da história, o treinador debutante ganhou ao seleccionador da Holanda.

A história de Genk

A história de uma imagem fala de uma fotografia a cores. O autor da imagem é anónimo, pese embora a memória vasculhada permita dizer que o autor é uma mulher. Muito provavelmente uma mulher solteira, de vinte e poucos anos, seguramente holandesa, loira com igual certeza e alta. Alta e feia, não restem dúvidas quanto a descrição tosca de um rosto  bom para ficar atrás de uma câmara. Não foi por isso que o fizemos, mas acabamos por o fazer. Entre um e outro e outro e outro copo nesta mesa, e outro, pedimos à rapariga da mesa do lado para segurar a máquina fotográfica, apontar, na nossa direcção, sendo que nós éramos três. Pedimos para levantar o indicador da mão direita e pedimos para carregar. Na imagem, por baixo dos sorrisos, havia uma carteira com cento e cinquenta euros, com cartões, com documentos de identidade, enfim, aquilo a que se convencionou designar por uma vida inteira. Num segundo, a carteira sobre a mesa da fotografia,  já não estava sobre a mesa do bar. No mesmo segundo, a desconhecida autora da imagem tinha seguido o caminho do anonimato absoluto. Ficou um português sem identificação em Tegelen, Venlo, Holanda, a  vinte e quatro horas de regressar a Portugal, sendo que no espaço desse dia tinha de dar um salto á Bèlgica por causa de um jogo de futebol. Abreviando foi assim: foi seguir do bar para a esquadra da polícia, da esquadra da polícia para o sala do pequeno almoço do hotel, da sala do pequeno almoço do hotel para o carro, e uma vez no carro foi seguir viagem de Tegelen para Roterdão.A distância? Cento e setenta e sete quilómetros. No porto de Roterdão, no porão de um barco ancorado onde funcionava uma loja de artigos de pesca, entre linhas, anzóis, canas, redes, gorros e impermeáveis, havia um sistema antigo de fotos à là minute e havia um secador. Saí de lá com menos nove euros, mas com mais quatro fotografias. O funcionário do consulado português tinha ficado à espera de um português, este, eu. Eu nesse dia fiiquei de repente a saber  que estava mais gordo ou era impressão minha. Saí de Roterdão com um documento verde, onde foi colada uma fotografia anafada de mim, que me permitiria voar desde Dusseldorf até ao Porto. Não sem antes porém… haver estrada e asfalto, do mal o menos, ao longo de cento e noventa e nove quilómetros, terminando a contagem no parque de estacionamento do estádio de futebol do Genk. Os jogadores subiam ao relvado para o aquecimento. Eu mandei embora o frio na barriga com dois cachorros comprados e comidos numa roullote mais limpa do que muitas casas portuguesas, cobertos por uma cebolada da cor de mármore acabado de lavar. As tais roullotesestão aqui no mesmo sítio, de novo horas antes de um Genk - FC Porto, três anos mais tarde. Poderia perder linhas a desenvolver o conceito segundo o qual há coisas que nunca mudam. É preferível não o fazer. Antes, no aeroporto do Porto, neste dia do regresso a Genk o taxista já ia embora quando reparou em qualquer coisa esquecida no banco de trás. Qualquer coisa era uma carteira. A minha. Esta chegou a Genk para contar a história.

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...